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MOÇAMBIQUE: RELACAO ENTRE O POVO E O ESTADO - ARTIGO 1 (de 6)

Writer's picture: canhandulacanhandula

A TESE CENTRAL


1. INTRODUÇÃO

A NAÇÃO moçambicana e o POVO Moçambicano cominuam a constituir um grande e nobre projeto não acabado. Este ideal, proclamado a 25 de Junho de 1975, dia em que coletivamente nos sentimos orgulhosos de pertencer a um projeto e uma verdade, um berço, fez-nos chorar de alegria. Todo o ser humano tem a necessidade e o direito implícitos de pertença. Arguimos para que esta mobilização nacional volte a constituir o leitmotiv uníssono das estruturas do poder do nosso país. Que os partidos políticos se sirvam disso, é legítimo, mas secundário. Para o estado, esta mobilização é vital e existencial.

2. PROPOSTA DE REPTO

A delimitação geográfica de Moçambique é um ato colonial, um território de vários povos, cada um com a sua cultura. Aquando da proclamação da independência, a proposta política da FRELIMO foi de forjar um estado livre e independente, uma identidade nacional congregando povos que aceitaram construir um futuro comum, uma nação coesa. Os timoneiros deste ideal estão desaparecendo aos poucos e daqui a mais dez anos, só nos restarão os escritos e as memórias fotográficas. Entretanto, ficamos mesmo assim com o dever de prosseguir com o projeto de forjar a NAÇÃO.

  • a consolidação da nossa nação depende de um Estado frágil.

  • a ilusão de que já somos uma nação forte faz-nos baixar os braços (Unidade, Trabalho e Vigilância, lembram-se?).

  • Percorridos 48 anos, o estado continua obedecendo a um partido que tende a excluir toda outra ideologia diferente da sua, através do instrumento “maioria”.

  • E por outro lado, as ideologias propaladas pelos partidos excluídos do poder ainda demonstram que não oferecem um manifesto que vá além do que substituir o partido no poder.

Entretanto, observamos a utilização do estado como recurso em si próprio e a fundação do projeto nacional está paralisada por uma lógica de apoderamento de recursos e de privatização do património do estado, com refúgio no Dubai e outras capitais. Isto corrói e debilita as instituições soberanas, incluindo as que são responsáveis pela segurança e inteligência nacional, como o provou o julgamento das dívidas ocultas. Constatamos assim que o Estado Moçambicano independente reteve as estruturas de produção e reprodução coloniais dependentes e viradas para satisfazer interesses externos, significando que o Estado Novo continua debilitado e incompleto:

  • Uma educação que continua a reproduzir de forma linear o modelo colonial, a formação de pessoas que na sua maioria esmagadora apenas aspiram a ser empregadas pelo estado. Estudar ainda equivale à memorização. As línguas nacionais não têm lugar neste sistema.

  • Uma produção econômica que continua a priorizar a exportação. A agulha, o botão, o palito, o frango, a maçã, etc. são importados. Por exemplo, o investimento na linha férrea, serve para a exportação, e não para ligar Maputo a Lichinga.

  • Uma banca que deixou de responder ao camponês (lembre-se do defunto BPD), e, através das taxas de juros, passou a servir uma elite citadina e os interesses do capital estrangeiro.

E tantas outras políticas ao nível da produção, das finanças, do atendimento ao público etc., que estão mais viradas para responder a uma economia de extração e exportação, do que para valorizar o povo e priorizar a manufatura de bens para o consumo nacional, dando lugar assim, para quem conhece as reais capacidades e potencialidades do país, a situações questionáveis e a uma frustração impotente.


Qual é o repto que lanço? Que voltemos para uma visão que continue com o projeto de forjar a Nação Moçambicana, economicamente, administrativamente e politicamente sólida, reconhecendo a pluralidade das realidades nacionais. Assim, interroguemo-nos:

  1. Qual é a visão que se propõe aos povos de Moçambique para que eles passem a ser um só povo, uma só nação? Por outras palavras, qual é o nosso manifesto nacional?

  2. Como se produz e quem nos propõe este manifesto?


3. O PODER DO ESTADO - OU O ESTADO E O PODER[1]

Para oferecer um quadro que ilumine o sentido de nação, este documento discute os seguintes conceitos: o estado, a nação, e a relação entre o povo e aqueles que, em virtude do exercício do poder, e do seu controle das instituições do estado, nos mantém na situação em que Moçambique se encontra hoje: terceiro país mais pobre de África, senão do mundo. Enfim, o Chade e Haiti são mais pobres!


1. A questão do poder

Existe a ideia errada, e mais do que ideia, atitude, de que o povo precisa do estado. Ora, sem o povo, o estado não tem fundamento de existência. Basta procurar os serviços no Registo Civil, no Conselho Municipal ou noutros serviços do estado. Se o estado tem poder de governar, esse poder é-lhe conferido pela existência de um povo. É o povo que constituiu o estado e por isso o povo não se sente confortável quando o mesmo estado utiliza a violência legal que lhe foi concedida, para oprimir o mesmo soberano: o povo. Quando a polícia mata cidadãos, ela não se dá conta de que a força e a autoridade de repressão que possui lhes foram outorgadas pelas pessoas que acaba de matar.


E para complicar ainda mais o exercício de soberania do estado, vem os partidos políticos: mais do que o estado, os partidos se outorgam o direito de utilizar o estado para excluir: Excluir não tão sorrateiramente do emprego estatal quem não pertence ao partido no poder. Excluir das eleições quem já sabemos que vai votar contra o partido, através de pequenas artimanhas. A intenção é que o estado e o partido se (com)fundam. Mesmo se há décadas esta situação era compreensível, aceitável e de certa forma inevitável por um sentimento de quase direito a recompensa pelos sacrifícios nacionalistas consentidos pelos nossos valorosos combatentes, hoje o palco evoluiu e temos uma geração de jovens de menos de 54 anos[2] que nunca viveram o colonialismo e tinham 6 anos no ano da independência – dos 32,9 milhões de Moçambicanos (2022), cerca de 28,2 milhões ou seja 85,7% nunca viveram o colonialismo e a guerra de libertação que justificava certos comportamentos privilegiados. Esta juventude hoje não compreende porque é que o antigo combatente se sentiria com direitos exclusivos e especiais. Chegou o tempo de a atitude de direito ao gozo de privilégios dar agora lugar a uma filosofia evolutiva e inclusiva de trabalho e mérito, sobretudo depois da dura experiência de guerra contra uma Renamo que hoje é um partido legal. Como existem e existirão mais outros partidos legais.


Esta maneira de gerir o poder faz com que a oposição também caia na mesma armadilha: tentar dominar o estado e a Assembleia para fazer a mesma coisa: excluir e acumular privilégios. Em vez de servir de consciência ética do exercício do poder pelo partido maioritário, a oposição desperdiça energias, imaginação e talento a explorar formas de depor o partido maioritário. Mas quando os interesses materiais dos dois coincidem, como por exemplo na votação dos privilégios monetários e subsídios dos membros da Assembleia, a oposição não existe.


Se a oposição, por ser minoritária, não pode bloquear tentativas de impor leis favoráveis a um partido, questões tão importantes de administração territorial, tais como o adiamento sine die das eleições distritais que deviam ter lugar em 2024, não pode trazer inovações e propostas de leis que façam avançar o país, e está apenas à espera de desalojar o opositor, para que serve ao estado tal oposição neutralizada? Isto leva-nos à situação actual:

  • Partidos que dialogam com o povo apenas nas vésperas das eleições. Um povo tido como trampolim um ano antes das eleições, é um álibi para o exercício do poder à revelia do povo para os restantes quatro anos.

  • Um estado que serve de caixa financeira para quem tenha poder de aceder aos recursos do país.

  • E uma oposição que está à espera do acesso à mesma caixa.

Esta situação força-nos a um diálogo de um horizonte de cinco em cinco anos, em vez de uma discussão sobre onde queremos que Moçambique se encontre daqui a duzentos anos (manifesto para gerações futuras). A falta desta discussão nós consideramos como um desperdício do exercício do poder.


Nas condições atuais de Moçambique como estado autônomo e independente, para podermos falar de nação devemos compreender a essência do estado. O ESTADO existe antes da NAÇÃO. É ilusória a ideia de que logo que tenhamos estado temos uma nação. Não é tão automático como se pensa: A nação é um ato voluntarista de todo um grupo de povos, num território definido, decididos e motivados a construir a tal nação. Esta decisão coletiva só pode existir e ser eficaz se não houver do lado de quem detém as rédeas do estado, uma prática de exclusão sem consequências, e do outro, segmentos da população com um sentimento persistente de que estão sendo excluídos.


Recuando mais, o povo existe antes do estado, e é o povo que, compreendendo a necessidade de uma certa organização e harmonia comunitária, afim de acomodar os diferentes interesses dos indivíduos da comunidade, decide constituir um poder público que vele pela ordem social, chamemo-lo o estado, a quem conferem os instrumentos necessários para gerir e moderar os diferentes interesses individuais, de maneira a que todos se sintam bem nessa comunidade. Uma vez o estado constituído, o povo consente submeter-se à administração deste estado. Isso só é possível com uma aceitação dos laços que unem os membros dessa comunidade, o consentimento de sacrifícios em comum, de gozarem juntos e juntos se protegerem contra qualquer ameaça exterior à comunidade. Na sua forma mais evoluída, o estado produz a nação.


Existe uma nação em Moçambique? Para responder a esta questão, basta viajar sobre a ponte do Rio Save e ouvir os discursos entre pessoas vindas do Norte e os que controlam a estrada e a ponte. Ou analisemos quais os Moçambicanos e em que posições estão empregados nas obras do gás de Cabo Delgado ou do carvão de Moatize, e as reações que esta situação suscita in loco. Para responder de forma mais construtiva e positiva, recorramos aos discursos do Presidente Samora Machel. E lembremo-nos por exemplo dos discursos onde explicava o porquê do apoio de Moçambique aos movimentos de libertação no Zimbabwe e na África do Sul, o porquê das represálias dos regimes ilegais daqueles dois países contra Moçambique. Foram esses discursos que fizeram com que o povo se unisse ao redor do seu Marechal e aceitasse de bom grado os duros sacrifícios exigidos, simbolizados aliás pelo cartão de abastecimento que muito jovem hoje não conheceu. Não acreditaria que até a cerveja era racionada!


Era eu professor em Chimoio na altura dos bombardeamentos de Ian Smith na Província de Manica (1977-1978). Lembro-me da imagem televisada do Presidente Samora na Praça dos Heróis em Maputo, recusando um guarda-chuva, o que galvanizou uma multidão que se estava já a dispersar, a continuar a escutá-lo sob uma chuva forte. O simbolismo de um estadista de alto grau procurando utilizar o estado e o poder para forjar uma visão, uma compreensão, uma aceitação do sacrifício, uma atitude comum, em troca de um país que se devia transformar em nação (país coeso) amanhã.


4. DO ESTADO PARA A NAÇÃO


1 A legitimidade do Estado

Hoje, e de forma evolutiva, devemos ultrapassar a fase da história em que o Estado serve o(s) Partido(s). Uma nação pressupõe um estado. Por seu turno, para que se possa construir a nação, o estado deve exercer a equidade de oportunidades de desenvolvimento dos povos. A exclusão não é um comportamento estadista. O Estado pressupõe: uma forma ou outra de convenção normativa que gere as relações entre os povos desse espaço de forma uniforme, justa e aceitável para todos; instituições organizadas e vocacionadas para exercer o poder e velar pela observação da convenção social, e reprimir violações, em nome dos povos do território (poderes executivo, legislativo, judicial); e um conjunto de códigos (leis) que rege todas estas componentes.


O Contrato Social está assim na base da existência do Estado.


A propósito destes pressupostos, pode-se indagar: E se o partido dirige a Assembleia, e a Assembleia faz o que o partido quer, em que situação fica o Estado? Será este modelo adequado à produção de uma visão de longo alcance? Por outras, quem se preocupa com a construção da Nação? Quem define, clarifica e puxa pela visão da nação daqui a duzentos ou trezentos anos enquanto a Assembleia e os partidos estão preocupados com a sua sorte no próximo ciclo eleitoral?


Duzentos anos não cabem nestes cálculos. Só períodos de cinco anos fazem sentido. Continuado a reproduzirem-se os resultados que já conhecemos: nunca nos separaremos da pobreza, nossa sombra, porque a visão é curta e constrangida à pertença partidarista.

Em princípio, quem dirige o Estado são os estadistas. Sendo assim, toda esta linha de estadistas do país, da capital e da nação até à Província e ao Distrito deve compreender a noção do Estado (Moçambicano), e o que a população espera deste estado. O estadista deve ter a consciência de que, para consolidar a nação moçambicana, os limites do estado não foram definidos pela libertação do país, mas sim por uma estrutura administrativa colonial precedente que não tinha os meios de desenvolver a colônia. Por isso é que Portugal colonial, para poder administrar minimamente a colônia recorreu a capitais estrangeiros e viu-se forçado a fazer várias concessões laborais, o mais que não fora para a exportação de mão de obra humana existente em Moçambique:

  • com a África do Sul, a mão de obra a Sul do Save para as explorações mineiras, através da Witwatersrand Native Labour Association, (WENELA).

  • com a Inglaterra, a mão de obra da zona central para as plantações de chá e tabaco nas Rodésias do Sul e do Norte.

  • com a Alemanha, a mão de obra da zona norte para as plantações de sisal na atual Tanzania[3].

  • Finalmente, confiscando as terras mais férteis, estabeleceu colonatos para colonos emigrantes Portugueses. E o sistema de chibalo[4] que o acompanhou, como sistema económico de uma autoridade colonial financeiramente pobre.

Ponto de partida para um estadista: herdar um país nestas condições requer uma boa compreensão da filosofia de gestão colonial. Devido à fraqueza das instituições Portuguesas, devemos ir ainda mais longe para interrogarmos a filosofia de organização do novo estado, baseado no legado de um estado colonial, para lançarmos os nossos próprios alicerces que nos permitam construir, não só um país, mas melhor ainda, uma nação, o projeto Samoriano, emprestando uma expressão de Aquino de Bragança.


2 Noção de Contrato Social


Como acabamos de dizer, não é Africano o conceito no qual nos baseamos ao decidirmos de viver como estado. Famílias foram separadas por fronteiras fortuitamente traçadas por geógrafos estrangeiros que não tinham noção nenhuma das antropologias Africanas. Por isso, se aceitamos este quadro administrativo legado do colonialismo, faz então sentido que compreendamos todo o conceito de fio a fio, na base do qual definimos e decidimos gerir o estado Moçambicano, porque ele estabelece o quadro normativo e filosófico que permite ao estado de agir. A cedência de lugar dos interesses do indivíduo aos interesses da coletividade constitui a origem histórica da legitimidade do poder do estado, que passa assim a ser soberano. Outrossim, parece-nos contraditório gerir um país baseado em estruturas e conceitos europeus com o comportamento cultural africano baseado na filosofia “o meu poder pertence também à minha família”. Dito de outra forma, temos questões profundas a decidir porque a filosofia Africana, nossa essência, reza o seguinte: eu sou, porque nós somos (eu não existo se não existir a minha comunidade). A filosofia Europeia por outro lado é muito individualista “cogito, ergo sum”.


Contrato social é, portanto, uma filosofia política que estabelece um acordo implícito e explícito entre o governador e o governado, e que define os deveres e os direitos de cada um, numa sociedade que se quer natural. De acordo com Thomas Hobbes[5] e John Locke[6], filósofos europeus postuladores desta teoria, o homem começou por existir num estado natural onde não havia autoridade; eles conceptualizaram e descreveram as vantagens de uma comunidade em que uma governação organizada e acatada por todos acabou sendo aceitável como útil. A imprescindível aceitação de todos os membros da comunidade de se submeterem a uma ordem assim propositadamente estabelecida, tinha como contrapartida lógica a salvaguarda pública de todos os direitos e deveres do cidadão pelos órgãos que passariam a velar por esta ordem constituída. Por outras palavras, “aceito a limitação da minha liberdade, desde que todos aceitemos, e aí reconhecerei que a minha liberdade tem limites conceptuais, morais, espaciais, temporais e legais no interstício do começo da liberdade do meu vizinho”. O poder de negociar estes limites passou a ser poder e dever do estado. Assim, os indivíduos aceitam (em regime de contrato social) deixar a conjugação das suas liberdades nas mãos de um soberano, desde que as suas vidas e o seu bem-estar sejam implicitamente garantidos por este poder que constituímos soberano. Em cujo caso, a ordem do soberano assim delegado passa a ser código legal de observância obrigatória.


Na ausência da ordem política e da lei, cada indivíduo teria liberdades ilimitadas, incluindo a liberdade de ter e acumular tudo, incluindo a liberdade de roubar, matar e violar. Seria uma guerra de todos contra todos. Assim, só podemos ganhar direitos civis se aceitarmos o dever de respeitar e de defender o direito dos outros, dando mão de algumas das nossas liberdades. Só assim é que podemos beneficiar da ordem política.


De acordo com J-Jacques Rousseau[7], o estado é uma pessoa moral cuja essência é a união dos seus membros, cujas leis são atos da vontade geral, e cujo fim é a liberdade e igualdade dos cidadãos. Logicamente, portanto, se um governo se excede e usurpa o poder do povo, o contrato socia está quebrado, o cidadão não tem mais dever de obediência, acabando mesmo por ter o direito de se revoltar!


Sendo assim, o estado, como soberano, não deve esquecer que quem o constituiu soberano é o povo, portanto em última instância, o verdadeiro soberano, é este povo pobre, esfarrapado e descalço, estudando na chuva e atravessando o rio a pé, respirando o pó do carvão de Moatize, explorado nas portarias. Esquecer que este é o verdadeiro soberano é uma armadilha.


Em conclusão, a legitimidade do estado reside no facto de que indivíduos consentiram, explicitamente e/ou de maneira tácita, dar mão dalgumas das suas liberdades e se submeter à autoridade (do governador ou da maioria) em troca da proteção dos direitos remanescentes e do direito ao gozo das garantias constitucionais vigentes, entre as quais são fundamentais o direito:

  • à manutenção da ordem social,

  • a uma educação e saúde robustas,

  • a uma alimentação e habitação condignas,

  • à proteção da vida e da integridade da família.


5. E A QUE PROPÓSITO VEM ESTE SALAMI DE NOÇÕES?

A propósito de abrir mão do poder exclusivista para criar a nação, argumento de fundo de toda a discussão que se segue.


A África, e Moçambique nela, é o continente mais frágil do mundo. Apesar de ser o mais rico em recursos minerais e naturais, tal como terras aráveis e abundantes, estamos numa batalha pela nossa sobrevivência alimentar, económica[8], militar[9], e, a médio prazo, pela nossa sobrevivência política. Pessoas morrem aos milhares cada dia de malnutrição, de calamidades naturais, de atividades terroristas, de conflitos armados, de epidemias de cólera e de outras doenças perfeitamente evitáveis. Muitas destas aflições que afetam a África persistem ao mesmo tempo que se extraem dos nossos países enormes riquezas do solo, do subsolo e do mar, riquezas essas que sustentam a alta qualidade de vida nos países que se situam no hemisfério Norte, a milhares de quilômetros de distância, enquanto os nossos países não avançam. Somos enganados com doações e empréstimos que nos manteiem endividados para sempre, e por uns míseros projetos de agências camadas de desenvolvimento que há meio século estão sediadas entre nós.


A maior razão da atenção virada para a África por parte dos países poderosos é a existência de recursos naturais. Com efeito, a África detém 30% de toda a riqueza mineral mundial, 15% do petróleo, 40% do ouro, 90% do crômio e da platina, as reservas mais largas de cobalto, cobre, uranio e ainda 75% dos diamantes mundiais. É em África que se encontram 65% de toda a terra arável mundial e as maiores reservas de madeira. Entretanto, precisamos do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas …precisamos de nos endividar…


Que tem isso a ver com Moçambique? Tem tudo, porque é um país com riquezas minerais, solo arável, e uma costa marítima enorme, mas, como outros países Africanos, continua na pobreza extrema, galeria em que vive 75% da população. A falta de recursos humanos e tecnológicos para a exploração indígena destes recursos levou-nos a ceder lugar à indústria extrativa estrangeira, na base de condições que ela impõe. Os grandes fatores da política económica que podem contribuir para as receitas do estado não estão sob controle soberano. Os que estão, contribuem pouco para os cofres, como é o exemplo do gás de Pande, apesar de estar a exportar cerca de 700 milhões de dólares por ano. Isso se deve aos termos dos contratos e ao oportunismo político.


Na ausência de um diálogo descentralizado entre o povo e os seus líderes (dirigentes, pelo menos), continuaremos um estado fraco paralisado na extração e exportação de riqueza bruta, por ser mais fácil e mais imediata, adiando silenciosamente o desenvolvimento da manufatura nacional. Nesta ordem de ideias, procurar espaço pessoal nesta extração passa a ser a preocupação de quem detém ou tem acesso às rédeas do estado, e para não perder a oportunidade, estabelece-se uma hierarquia estatal de acólitos que sobrevivem de louvores ao líder. Entretanto o que se passa com o povo? Ele espera que o desenvolvimento, a boa sorte que venha

  1. do líder, ou

  2. do estrangeiro/da ajuda internacional, das ONGs, da USAID, do FCDO, da AFD, etc ou então

  3. de Deus, recurso último e todo-poderoso.

Daí a corrida e o apego às igrejas que pregam a prosperidade imediata, algumas delas chefiadas por charlatães que compreenderam quão fácil é cativar um povo em sofrimento. O chefe político também compreendeu que muito voto está sentado na igreja. Tantos países Africanos estão repletos de povos que esperam muito pouco de um estado parasita, de uma ajuda internacional a conta-gotas, moralizante e condicionada à extração de riquezas e à imposição de valores morais não Africanos. Estes povos acabam esperando por um deus que promete enriquecimento fácil e curas miraculosas que, entretanto, também estão a levar um tempinho a acontecer. Mas vão acontecer, se tivermos fé suficiente. E se não acontecer, a culpa é de quem tem pouca fé. Lógica demagoga opressiva, malvada e mortal.


Isto vem a propósito de que apesar do gás, dos rubis, da madeira, do pescado, do carvão, das areias pesadas e de tantas outras riquezas, o Banco Mundial apresenta, no seu relatório[10] de 2022 os seguintes indicadores da situação socioeconómica de Moçambique:

Indicador económico/social Índice nacional em relação ao padrão

PIB$ 17,85 biliões

Dívida publica 86,2% do PIB (15.39 biliões). Padrão: 35%

Taxa de inflação anual 10,3%

Taxa de pobreza 74,4% da população

Mortalidade infantil (U5CMR) 70/1000

Esperança de vida à nascença 59 anos

Acesso a eletricidade 31,5% da população

Uso de internet 17% da população

Completam o ensino primário 58% dos estudantes inscritos


Nesta situação, o Moçambicano tem o pleno direito de indagar as relações entre si e o seu estado. Para ajudar nesta reflexão, vou apenas discutir três mega-assuntos, não na sua plenitude, que estou longe de conhecer, mas apenas para discutir a questão da defesa dos interesses do povo por parte de quem tem o dever de o fazer, a saber:

1. As dívidas ditas ocultas[11]

2. O carvão de Tete[12]

3. O gás de Cabo Delgado[13]


É claro que os recursos de Moçambique são muito mais do que isso, mas este trio carateriza bem mutatis mutandis tantas outras riquezas naturais de que o país pode desfrutar melhor e que podem ser, não só uma alavanca melhor no desenvolvimento nacional, mas também um suporte para melhores relacionamentos entre o povo e o seu estado.


Enquanto evitamos propositadamente de nos concentrar sobre os partidos, não deixamos de mencionar o seu impacto: os serviços à população são prestados pelo estado, não pelo partido. O estado e o Partido não se devem confundir, e na realidade devem ser distintos. O partido influencia a maquinaria política que dirige o estado, e essa maquinaria é o governo, nomeado pelo partido no poder. Mas o Estado existe, qualquer que seja o partido, para prestar serviços. O emprego no estado não devia estar refém dos desígnios de nenhum partido.

Jose, Tete

Outubro de 2023

[1] https://infoenem.com.br/estado-e-poder/ [2] https://en.wikipedia.org/wiki/Demographics_of_Mozambique [3] Foi nessas plantações que se criou a Tanganyika Mozambique Makonde Union (TMMU), precursora da Mozambique African National Union (MANU), filamento que em coligação com outras três organizações do nacionalismo Moçambicano deu nascença a FRELIMO. [4] https://acrobat.adobe.com/id/urn:aaid:sc:EU:bebd68e5-00b7-4c7e-ba20-c6b8b0809845 [5] https://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Hobbes#Political_theory [6] https://courses.lumenlearning.com/suny-hccc-worldhistory2/chapter/john-locke/ [7] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Social_Contract [8] https://www.infoescola.com/geografia/economia-da-africa/ [9] https://www.intercept.com.br/2018/12/25/presenca-norte-americana-na-africa/ [10] https://data.worldbank.org/country/MZ?locale=pt [11] https://www.cipmoz.org/pt/dividas-ocultas/ [12] https://cipmoz.org/wp-content/uploads/2021/01/Vale-decide-Desinvestir-em-Moc%CC%A7ambique-2.pdf [13] https://www.dw.com/pt-002/projetos-de-g%C3%A1s-deixaram-mo%C3%A7ambique-numa-armadilha/a-66208487



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