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A CULTURA CASUAL DO TRABALHO, A POBREZA CAUSAL DA CULTURA

Writer's picture: canhandulacanhandula

A.    NARRATIVA

Faz hoje dois anos e meio que me reformei e me retirei da função pública, tendo-me estabelecido de volta em Tete.  A reforma dá-me todo o tempo, não só de observar à distância, mas também de tratar dos meus próprios assuntos eu mesmo, em vez de enviar outra pessoa.  Na minha idade, até podia enviar amigos mais jovens para tratar dos meus assuntos nas instituições públicas, mas decidi que iria pessoalmente enquanto puder.


Tendo visto, vivido e tentado compreender outras atitudes, outras culturas, outras dinâmicas públicas sociais e económicas em muitos países, não posso escapar à tendência de comparar.  A pontualidade, o aprumo na vestimenta, a atenção ao cliente, a celeridade e perspicácia na solução e na resposta, a utilização do computador não só para acelerar, mas também para arquivar e facilmente encontrar, a atenção ao conforto do cliente, todos estes elementos são pormenores que enriquecem ou empobrecem um país no seu coletivo.


Para este tema, passo a tecer algumas considerações em volta de algumas situações que o cidadão vive em Tete, minha terra. Minha experiência.

 

B.     A ODISSEIA DO CIDADAO PACATO NAS INSTITUICOES PUBLICAS

 

1.      No Conselho Executivo e na Conservatória Publica

Existem caraterísticas comuns positivas e menos positivas no atendimento no Conselho Executivo e na Conservatória, sobretudo a atitude do funcionário cujo dever no balcão de atendimento é satisfazer as necessidades do público: Funcionários na conversa mole, no whatsapp obtuso.  Numa fila de seis balconistas, apenas dois estão a atender ao público. A observação deste dia pode não ser a mesma de amanhã. Outros estão usando o tempo de forma casual enquanto a fila dos clientes se alarga. Muitas vezes fora do edifício, ao sol, à poeira do carvão de um Moatize que esta pertinho, como se fossem mendigos.  Se fossem empresas de produção de mercadoria, há muito estes escritórios teriam fechado as portas, de tanto perder e de tanto défice no volume de produção. Não existe competição.


Visitei sete vezes o Conselho Executivo entre Dezembro 2023 e Fevereiro 2024 na procura de regularização da minha construção: “venha daqui a uma semana”; “dê o seu número de telefone, será contactado”; “não temos viatura de serviço, se tiver a sua viatura, venha na sexta Feira”.  “Não é este papel que devia preencher e outro, informaram-lhe mal”.  Olhando para o impresso preenchido em Novembro de 2022, reparo que nesse “informaram-lhe mal”, paguei 7.952 meticais por transferência bancaria.  O que me estão dizendo afinal é que fiz um gasto desnecessário! 


Numa altura destas, os arquivos municipais de toda a população de Tete existem em forma de fólios e papéis facilmente combustíveis.  Apesar de toda a saga, devo exprimir respeito pelos funcionários do Conselho que não perdem nenhum papel naquela embrulhada (pelo menos pelo que eu sei).  O que custaria instalar uma dezena de computadores ligados a internet, formar os funcionários na manipulação rápida do computador e na organização dos arquivos, para se passar a um arquivo eletrónico menos exposto ao risco e mais facilmente descobrível? E nesta altura do campeonato, mesmo mais facilmente transmissível ao cliente eletronicamente (e-mail, whatsapp, etc). Eu já ordenei no meu passado ativo, a instalação em cerca de 35 escritórios de um circuito de mais de vinte computadores em cada escritório.  Todo esse trabalho não me custou mais do que $15,000 (MZM959.000) em cada escritório, formação e tudo.  


Perdemos muito tempo nestes escritórios.  Uma pessoa que planifica visitar estes serviços, deve anular qualquer outra atividade durante a manhã desse dia, enquanto na realidade podia passar apenas meia hora.  Não é o pessoal que falta; são equipamentos mais modernos e baratos.  A falta do simples rolo de papel do POS nos força a ir ao banco, a mil metros de distância, para transferir vinte e cinco meticais para a conta da Conservatória.  E perder mais uma hora e meia na bicha do banco, frente a um guarda que visivelmente tem o prazer de controlar as bichas e as entradas.  Para depois voltar a Conservatória, já mais perto do meio-dia.  


No Conselho Executivo os funcionários trabalham o melhor que podem, num escritório cuja metade está abarrotada de arquivos de papeis que seriam um verdadeiro combustível se houvesse um pequeno curto-circuito infeliz.  A atenção alegre e a humildade com que somos recebidos no Conselho Executivo devem ser mencionadas.  Podem ser lentos por falta de reciclagem e equipamento adequado, podem estar ocupados no telefone e no whatsapp, mas são muito atenciosos e respeitosos.  Alias, a minha última experiência ainda mais positiva foi uma (ou três) visitas que fiz ao BAU de tete. Muito carinho, muita atenção, muita celeridade e solução do meu assunto.  E muito respeito, sem bichas.

 

2.      Atendimento num gabinete jurídico privado

De volta a Tete em Dezembro de 2021, procurei um gabinete jurídico ao qual me liguei para pôr em dia a minha papelada, renovar os meus contratos, alvarás e autorizações.  Desde 2022 até hoje, meti dois documentos para tramitação.  Recebi de volta um, e o outro ainda está circulando algures até agora.  “Venha amanhã”, “venha próxima semana”, “está no BAU”, “enviei um funcionário para seguir o seu dossier”, “falta o NUIT”, “estou fora de Tete”, “vou a um casamento”, “o BAU diz que deve pagar de novo porque o deposito do ano passado já caducou” e tantas outras explicações furadas de adormecer um boi inteiro. 


Por tradição e consciência, logo que me pedem para pagar, tento pagar no mesmo dia.  Na função pública aprendi que a celeridade dos outros depende muito da minha celeridade porque se trata de uma corrida de revezamento.  Até hoje, visitei aquele gabinete quase uma vez por semana.  Saído do outro lado do rio Zambeze, cada vez que me desloco ao centro da cidade pago a portagem a cinquenta meticais a travessia.  Em 80 semanas terei pago de portagem pelo menos 4.000 meticais, para além do combustível para a minha viatura.  Quem se importa com as minhas despesas? O jurista? Os seus empregados de escritório?  Acho que nenhum deles faz sequer uma ideia do custo financeiro e do custo humano, a paciência a que me obrigam quando dizem “venha na próxima semana!”


Seja qual for o nível de eficiência e o ritmo de despacho de dossiers deste escritório, os funcionários estão naturalmente à espera do seu salário mensal, e rezam para que este escritório não caia na falência, porque dele depende a sua vida e a vida de suas famílias.  Mas isso só é possível se o escritório tiver uma estratégia deliberada de satisfação do cliente, para a retenção, e mesmo aumento do número de clientes.  Um escritório privado que se comporta como um escritório do estado, não é negócio que vá longe ou prospere por si.

 

3.      O atendimento nos serviços de água e eletricidade (FIPAG e EDM)

 A falta de celeridade no atendimento, duas horas de espera só para pagar mil meticais! Estas empresas mais se parecem com departamentos de ministérios e os trabalhadores, se parecem mais com funcionários, não num espaço comercial onde “Time is Money”.


Na primeira semana de Janeiro (uma Sexta Feira) o contado elétrico da minha casa, por excesso de equipamento.  O novo contador foi reposto uma semana mais tarde.  O serviço foi amigo e simpático.  Informei aos piqueteiros que o contador queimado tinha mais de 1.500 unidades de energia (quantia para mais de três meses).  O que devia eu fazer para recuperar o meu crédito?  “Dá-nos o seu número de telefone, uma vez ativado o novo contador, vai receber uma mensagem com as unidades para introduzir no novo contador”. 


Desde então, visitei o escritório da EDM nove vezes, de cada vez sai com uma explicação diferente que me deixou mais baralhado mas sem solução.  A décima visita, fui remetido ao piquete, que me mandou passear porque era tarde (10 horas da manhã de uma Sexta-Feira), que viesse de novo na Segunda Feira de manhãzinha.  Na Segunda-Feira tudo o que consegui foi um número de telefone da pessoa que podia ajudar, mas que não estava presente.  Chamei a pessoa, tomou nota do meu contador anterior e do novo, e do meu telefone, e disse-me que ia receber resposta mais tarde.  Janeiro e Fevereiro passaram e faz agora duas semanas do último contacto.  De cada vez deram-me a impressão que apenas me desencontrei com a pessoa que devia resolver o assunto, venha na quarta feira, ele terá regressado.  Adormeci nesta lenga-lenga, ate que: No dia 26 de Marco pediram-me para escrever uma carta, finalmente a explicar o problema, para recomeçar um novo ciclo de despachos do Diretor Comercial!


Tal é a narrativa das minhas visitas e dos meus encontros com o serviço público e pergunto-me: por este andar, quando é que conseguiremos desenvolver-nos?  Uma atitude casual e sertaneja em relação ao trabalho, um menosprezo do cliente, talvez incompetência de certos servidores, uma inércia própria de um servidor do estado e não de uma empresa comercial.  Uma EDM poderosa que trabalha ao seu ritmo, não ao do cliente pobre.

 

4.      O supermercado da Praça

Os poucos supermercados em Tete têm consciência de não ter muita competição, por isso se dão ao luxo de vender produtos expirados, produtos vegetais não tão frescos, produtos de carne com cheiro a meio podre, especialmente os estabelecimentos chineses.  Ainda assim vendem o plástico para carregar os produtos adquiridos, o cliente passando inconscientemente a subsidiar com cinco meticais a publicidade do estabelecimento, devidamente estampada no saco plástico.  Porque tanta ganância de fazer dinheiro?


Assim como um funcionário de estado, o comerciante fecha as suas portas para o almoço, fecha o seu estabelecimento na hora de saída da função pública, atitudes que transformam o comerciante num funcionário público em vez de uma pessoa que procura todas as oportunidades para ganhar dinheiro com o seu comércio.  Porque é que ele não pode continuar a vender até vinte ou vinte e uma horas?  A legislação laboral teria encorajado uma inércia laboral, a pessoa ao serviço da legislação em vez do contrário?


Não existem manifestações da eficácia de alguma inspeção sanitária, de inspeção fiscal, nem parece existir controle de qualidade. Espero ao menos que exista uma autoridade de controle de qualidade das importações (não pesquisei esta questão).

Estamos abandonados às forças do mercado, com o se sói dizer!

 

5.      A vendedora de frutas nas bermas da estrada

Em contrapartida e de forma refrescante, sai-se ao encontro com um vendedor ou vendedora pobre.  Devo apreciar a simplicidade e o sorriso do vendedor (na maioria, vendedora) de frutas nas esquinas das estradas, queimado/a pelo calor de Tete e aspergido/a pela poeira do carvão ao qual tanto nos habituamos, e das viaturas.  Sempre pronto/a a ajudar a escolher produtos frescos, mesmo perdendo possivelmente 20% a 25% do produto pelo efeito do calor.  Ainda assim, disposto/a a negociar o preço.  Enquanto não hesitamos negociar com os mais pobres, no supermercado ficamos de boca caladinha frente às caixeiras taciturnas. Não se negocia o preço com o rico, nem nos atreveríamos, mas temos a coragem, altivez e insensatez de o fazer com o pobre!


Aprendamos a não negociar o preço com a pobre vendedora, se temos a coragem de ir a um supermercado e sairmos sem abrimos a boca.  Se tivéssemos ideia da margem de lucro do supermercado, até daríamos mais a vendedora e exigiríamos melhor qualidade no supermercado.  Essa heroína silenciosa e ignorada que nos ajuda a poupar, enquanto nos alimenta com produtos naturais, frescos, não geneticamente modificados e sem açúcar industrial (salutares). Nossa/o irmã/o, mãe/pai.

 

C.     CONCLUSAO

 

  • A causa da nossa pobreza é também (não só) resultado da nossa atitude casual em relação ao trabalho.  Assiduidade, consciência nacional, celeridade, respeito pelo publico são valores que devemos cultivar.  Quem nos empurra nesta direção?

  • Não me parece que o jurista e o seu gabinete se dão conta de que a demora na resposta ao cliente, com o tempo vai se traduzir na redução do número de clientes, reduzindo assim as receitas para manter a renda e os serviços, perigando o emprego e os salários de que dependem tantas famílias cujos chefes são empregados seus. O que entende ele por espírito de negócio?

  • O funcionário do estado sabe que trabalhando oito horas ou cinco, desde que marque presença, receberá o seu salário.  Da mesma forma que um enfermeiro do estado que trate cem feridas ou que trate vinte, receberá o mesmo salário.  A motivação e o brio profissional encontram-se algures. Nas mãos de quem?

  • De igual forma, a EDM sabe que resolver ou não a questão de unidades perdidas pelo cliente não afeta a necessidade que o cliente vai sentir de continuar a comprar a corrente elétrica de qualquer forma: cliente cativo que não precisa de acarinhamento. Até quando?

  • Ao comprar o saco de plástico na loja, o cidadão esta sendo obrigado a pagar parta poluir o seu próprio meio ambiente.

 

A cultura do trabalho num país pobre que não valoriza o tempo e o cliente, nem se importa com o volume de produção, desde que ao fim do mês o salário chegue. Faz falta a consciência da necessidade do esforço de todos.  Não temos forças que nos mobilizem ao trabalho dedicado e duro.  A nação precisa de uma direção, precisa de ser motivada e unificada no esforço para sair da pobreza. Um país pobre que adota o horário de trabalho de países já desenvolvidos não pode sair da sua pobreza.  Devíamos trabalhar mais horas do que os mais ricos.


Não sairemos da pobreza enquanto não modificarmos a nossa atitude e disciplina em relação ao trabalho.  Enquanto não houver mobilização nacional sobre a necessidade do trabalho árduo.


Nestas condições, continuaremos a acreditar que a ajuda internacional é a solução para os nossos problemas de desenvolvimento. Mas

  1. Como é que os mais ricos se desenvolveram se não foi pelo trabalho árduo? 

  2. Quem nos convenceu que a ajuda internacional vai nos desenvolver?  Por outras, quem inculcou na nossa mentalidade que a União Europeia ou o USAID ou ADF ou GIZ ou outra organização têm o dever de nos desenvolver? Dever baseado em quê?

  3. Porque é que os nossos discursos oficiais parecem sugerir desesperadamente que o nosso desenvolvimento é dever de outros continentes e outros países?

  4. Desde quando nos ajudam eles e porque é que com mais de 48 anos de ajuda não nos desenvolvemos, não existe aí ratoeira? 

 

Não será tempo de mudar de tradição e dos termos de parcerias?

Que alguém nos proponha uma visão, nos mobilize ao trabalho. Batalhemos por nos próprios.


Jose

Tete, Abril de 2024



 

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