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CRONICAS DE TETE - 3 Re-editado

O momento político em Moçambique depois das eleições de Outubro me leva a rever a minha literatura para de novo ressaltar certos aspectos e certas realidades.  Esta é a minha contribuição para este combate duma juventude ignorada, como reformado que não pode mais se juntar ao jovem e ir à rua manifestar.  O escravo que não tenta se revoltar, não merece que tenhamos pena dele, diz a sabedoria Africana (Steve Biko).  Pois a minha revolta não pode ser física, mas pode e é esta contribuição, a análise intelectual de situações que nos devem interpelar a todos como cidadãos. A ruptura desastrosa do contrato entre o povo soberano e o estado, por causa do padrinho que se interpõe: o partido!

O artigo


A.     Reprodução de um artigo de reportagem jornalística

 

O artigo começa


Tete: Mais de 300 imigrantes neutralizados pelas autoridades[1]

27 DE JULHO DE 2024, por José Caetano


As autoridades policiais neutralizaram trezentos e vinte e dois cidadãos de várias nacionalidades, na província de Tete que tentavam atravessar para o país.


Do numero avançado, noventa e oito são de nacionalidade malawiana, trinta e seis zambianos e trinta e oito zambianos, interpelados nos distritos que partilham o limite fronteiriço, segundo informou a Rádio Moçambique.


O porta-voz do comando provincial da PRM, em Tete, disse citado pela emissora que comparado com o igual período do ano passado, verifica-se uma redução de dezoito violadores de fronteira, mercê das medidas impostas pela corporação.


Feliciano da Camara disse ainda que a corporação vai continuar a apertar o cerco nos distritos situados na linha de fronteira com os países do interland, para  garantir a ordem, segurança e tranquilidade públicas.


Avançou que os distritos de Angónia, Tsangano, Moatize, Changara, Mágoè, Zumbo e Marávia, são os pontos onde ocorrem mais casos de violação sistemática de fronteira.

Fim do artigo


B.      Considerações

Logo à partida, o uso da expressão “neutralizaram” sugere que se trataria de criminosos ou terroristas.  Começo por aqui para chamar a atenção ao poder que os meios de comunicação sociais têm de moldar as percepções públicas, influenciar comportamentos e atitudes, infundir narrativas negativas e pôr gasolina no fogo.  E à necessidade de responsabilidade social no exercício da reportagem.


Em que medida esta operação pode ser considerada um sucesso?  O artigo dá a impressão ilusória de sucesso.  Eu gostaria de contrapor outra narrativa, uma vez que o artigo não afirma que se tratasse de criminosos.  Não é minha intenção  desvalorizar o trabalho árduo de compatriotas que se dedicam à tarefa que lhes foi incumbida pela profissão.  Pretendo demonstrar que se trata da aplicação de uma política errada e fora do jogo, por atacar a pessoa mais fácil de atacar porque está indefesa e em posição de pedir. 


Isso nos distrai do verdadeiro problema, e nos leva a executar uma política migratória que não é nossa.  Contribuindo assim para reforçar a percepção que se generaliza de que a única forma de relacionamento entre o estado e o povo é uma relação de violência e de distanciamento.  Porquê?  Porque muitos destes jovens migrantes têm famílias moçambicanas, sobretudo nas zonas fronteiriças.  E Tete é uma Província mais fronteiriça do que todas as outras Províncias do país.  Pode assim erguer-se em exemplo de gestão migratória positiva e humana.


Acho-me em posição de me pronunciar sobre este assunto pelas razões seguintes (que espero não se assemelhem a pegar num canhão para matar um pintainho):

  • Primeiro, eu sou e reconheço-me como produto de uma migração vasta: a etnia Ngoni migrou da África do Sul nos princípios do século XIX (1820s), e no seu périplo pela África Austral, foi deixando grupos e regulados seus no Botswana, Swazilandia, Zimbabwe, Zâmbia, Moçambique, Malawi, até o Sul da Tanzânia.  Acabei sabendo por exemplo, que o povo Changana do Império Ngungunyana no sul de Moçambique, tem consanguinidade com os Ngoni a Norte (Tete, Niassa). Soshangaan, Ngungunyana, Zwangendaba e outros chefes militares desta migração Ngoni foram todos súbditos do Império Zulu, o mais famoso dos quais foi o de Shaka.  Swazis, Ndebeles, etc, somos todos uma grande família.  Somos, portanto, essencialmente produtos indistinguíveis da migração.

  • Em segundo lugar, eu próprio acabei me casando com uma não moçambicana, tenho um filho que é moçambicano, enquanto os outros optaram pelas nacionalidades de onde nasceram (Tanzânia, Congo) e até tenho netas que são canadianas!  Na minha tenda tenho assim quatro nacionalidades, todas do meu sangue.   Portanto, o tratamento do estrangeiro toca com as minhas emoções sociais inteligentes de consanguinidade.  Quem é esse jovem anônimo “neutralizado”?

  • Em terceiro lugar, tendo trabalhado a melhor parte da minha juventude (1989-2021) para o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR/UNHCR), incluindo como Representante do Alto Comissário na Serra Leoa, Níger, Chade, Nigéria e Tanzânia, conheço com profundeza e autoridade a questão de migração forçada dos refugiados, dos deslocados de guerra e dos migrantes, como acabam no mercado da escravatura no Norte de África ou engolidos sem dignidade no mar Mediterrâneo, por causa da politica migratória desumana da Europa.  E outras consequências humanas, sociais, econômicas, políticas e demográficas deste drama humano. 

  • Conheço as origens da noção negativa da migração.  Nem todo o migrante é refugiado, e a grande maioria dos refugiados não o fazem por motivos migratórios voluntários.  Mas a migração é muitas vezes forçada, não por razões políticas como a do refugiado, mas por razoes econômicas.  Apesar de se exercer como opção (ficar ou migrar), muito migrante jovem o faz porque é forçado a procurar sobrevivência minimamente humana noutros horizontes


A gestão atual do fenômeno da migração nas fronteiras imediatas está baseada numa FILOSFIA NEGATIVA[2], ipso facto, errada e ilusória. Ela esconde duas vertentes de uma relação desequilibrada: a migração do Africano para a Europa e América é fortemente controlada e presumida como uma invasão, enquanto que a migração de cidadãos dos países do Norte para os de África não só é facilitada, mas até despojada de burocracia.  Um sistema de vistos de entrada no espaço europeu que trata os Africanos de presumíveis suspeitos logo no momento de pedido de visto de entrada. Uma política migratória cuja administração nós até aceitamos executar em seu lugar.


Desde a Cimeira da Valetta (Malta)[3], a Europa vem forçando a África, com incentivos de cooperação técnica e financiamentos a fundos perdidos ou por endividamento forçado, a adoptar o seu ponto de vista e a sua filosofia negativa sobre a migração.  Daí deriva todo o sentido de controlo, toda a atitude taciturna do oficial de migração, o olhar desconfiado, pronto a descobrir comportamentos suspeitos de pobres viajantes cansados que estão pedindo um visto.  Através de organizações que prestam assistência técnica especializada, tais como a Organização Internacional para a  Migração (IOM), todo o sistema migratório que adotamos assenta-se sobre o controlo, a expulsão para o ponto de partida, as cinturas migratórias nas pontes e estradas nacionais principais. 


O serviço de migração em África (e Moçambique na onda) saiu à rua, e hoje trabalha ao relento, ao lado do agente do tráfego, e do agente florestal.  Enquanto este controla o pequeno comerciante de carvão, não consegue controlar o verdadeiro tráfego aberto de madeiras raras, e não consegue enxergar as diferenças para o ambiente entre um camponês pobre que corta lenha, muitas vezes já seca, para fabricar o seu carvão e sobreviver, e o grande comerciante com camiões e serras elétricas, que abate grandes troncos de arvores raras, e desfloresta muito mais, para exportar madeira preciosa.  É o mesmo que reprimir um caçador de gafanhotos que quer matar a fome imediata, e deixar em paz o caçador de elefantes que mata o paquiderme apenas para exportar  o marfim ou levar troféus. 


Nisso tudo, não existe tempo de apreciação positiva das razões do migrante.  Por isso, a nossa política está condenada ao fracasso, ao cansaço dos nossos agentes que acabam perdendo o sentido do sorriso espontâneo, depois de um trabalho ingrato que se assemelha a querer esgotar a areia debaixo do mar.


E através desta ação, o estado apresenta-se ao pobre jovem, cujo primo vem do Malawi (país de secas e fomes cíclicas) como distante do povo e cuja relação com este povo só se pode exprimir de forma repressiva e seletiva: essa é a imagem que projeta voluntaria ou involuntariamente, a presença conjunta das várias forças policiais: migração, trânsito, florestal.   


C.     Sugestões

Passe este artigo a sua hierarquia e deixe por aí.  Esperamos que ele constitua leitura suficiente para provocar a seguinte interrogação: nas condições históricas, geográficas, econômicas, sócio-políticas e demográficas deste país, qual é a política migratória que seria melhor para responder eficazmente aos anseios do nosso povo e e às necessidades genuínas dos povos dos países vizinhos?  A história humilhante dos Moçambicanos nas minas da África do Sul, a contribuição dos Moçambicanos nas plantações de sisal da Tanzânia ou do chá e café da Rodésia do Sul são tantas referências da contribuição do trabalho migratório que hoje reprimimos, mas que ajudou a desenvolver terras estrangeiras. 


Não me parece possível que tivesse surgido uma cidade como Johannesburg se não tivesse sido a mão de obra Moçambicana!


Lembram-se daquele contentor onde foram descobertas mais de 60 pessoas mortas de asfixia e calor, em Tete?[4] Que morte pode ser mais horrível e mais lenta?  O que significa isso em relação, não à ingenuidade macabra do homem, mas ao desespero que faz com que a pessoa se meta num camião-cisterna entufado de vapores de combustível malcheiroso e tóxico, só para poder passar pelo corredor de Tete?


Considerando que existem também compatriotas cidadãos Moçambicanos em situação migratória não regular nos países vizinhos (África do Sul, Comores, ESwatini, Madagáscar, Malawi, Seychelles, Tanzânia, Zâmbia, Zimbabwe), haveria a possibilidade de se formular, negociar e adoptar através da SADC uma política mais positiva, mais humana e mais solidária com os vizinhos e que fosse ao encontro das necessidades do jovem, uma política mais protetora do migrante?


Eu sugeriria que um dos elementos de uma política positiva começa por distinguir uma fronteira terrestre de uma fronteira aérea.  Quem vem de avião e quem vem por via terrestre não estão na mesma liga de futebol.  Quem vem de avião é muito provável que tenha um bilhete de volta, enquanto que quem tenta atravessar a fronteira a pé, muitas vezes o faz pela rota do cabrito nem sequer tem dois meticais para parar e comprar um chazinho quente na berma da estrada. 


Sugeriria também que se encorajem os países vizinhos da Província a estabelecer em Tete, à semelhança do Malawi, um Consulado, cuja função principal seria a monitoria e a proteção dos seus cidadãos na província, incluindo ajudar a resolver situações irregulares, ajudar a obter documentos de estadia reconhecida (sazonais, temporários, permanentes, etc), visitas às prisões, representação em tribunais locais, etc.  Talvez por sua vez Moçambique possa fazer mais para a proteção dos seus cidadãos nos países vizinhos.  Uma expansão consular/jurídica, uma redefinição de medidas de reciprocidade positiva com os vizinhos. Trabalho diplomático na base.


Acreditemos que ninguém deixa o seu país definitivamente de forma ligeira. É uma decisão difícil e agonizante, sobretudo porque na maioria dos casos, o jovem se vê obrigado a deixar para trás a sua família também jovem.  O funcionário Africano não devia copiar o funcionário Europeu que é insensível ao drama humano.  Não é nossa cultura.

Fica, todavia, subentendido que a proteção do estrangeiro, em qualquer situação, incumbe em primeiro lugar ao país hospedeiro.  E que a reciprocidade faz parte das relações entre estados.


Um estudo sociológico entre migrantes levaria as nossas instituições a serem mais humanas e a saber que não faz mais sentido para o jovem, pensar que é Moçambicano, Malawiano, Zimbabweano ou... e insistindo em ficar sentado se o seu país e o seu estado não lhe podem criar emprego ou condições de acesso ao emprego.  Onde o jovem encontre um emprego que lhe permite levar comida à sua pequena família, pôr a sua criança na escola, comprar cadernos, sapatinhos, roupinha de segunda mão, comprar uns medicamentos falsos na rua par a saúde da sua família, aí passa a ser a sua pátria: o país que lhe aceita, que lhe dá oportunidade de trabalhar e ter uma vida minimamente aceite para si, sua família e seus dois ou três filhinhos.  Temos em Tete pessoas que sobrevivem de 1.500 meticais por mês e que não vão arrecadar pé a não ser se forem expulsos, porque nem isso conseguem ter na sua terra. 


Nestas situações, a terra adoptiva é mais importante.  Tão importante como ser pai não é questão de sangue, mas sim de amor.  Se ser pai fosse apenas uma questão de ser doador de espermatozoides, seria demasiado fácil parentar.  Se ser Malawiano significa permanecer no Malawi, Moçambicano ficar em Moçambique, isso seria miopia no mundo de hoje.


Não se pode combater a migração.  Pode-se modificar o regime e a forma de migração, a forma de tratamento do jovem que pode muito bem ser família.  Sobretudo tratar o homem com dignidade e empatia.  Não com desprezo e desconfiança herdadas de uma Europa que permanece com um espírito colonial de superioridade e que considera os nossos países como meros armazéns de matérias-primas para a sua prosperidade.  Uma Europa que entretanto fundou um grande cemitério no Mar Mediterrâneo[5] e que financia os países costeiros para constituírem fronteira avançada intransitável da Europa.  Essa Europa não seja o nosso exemplo[6].


Lembrem-se que também Jesus for refugiado no Egipto.  Logo da Ásia, escolheu a África.  Significa que a África é um continente mais acolhedor do que estamos a praticar, por causa de uma política de interesses estrangeiros e alheios à nossa cultura e à nossa realidade regional.  Este é um aspecto onde o estado deve e pode inventar novas maneiras de gerir a coisa pública e destacar-se dos vestígios de uma administração colonial.  Moçambique não é nem excepção nem exemplo: existem Moçambicanos em todos os países que constituem nosso cinturão fronteiriço.  Não façamos aos outros o que não desejaríamos que acontecesse ao nosso filho desempregado que procura a sua fortuna no Zimbabwe ou8 Africa do Sul.  O primeiro impulso ao vermos uma pessoa solicitando serviços não deve ser de imaginar um criminoso escondido por detrás!

Canhandula, A. Jose

Tete, Julho de 2024




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