O momento político em Moçambique depois das eleições de Outubro me leva a rever a minha literatura para de novo ressaltar certos aspectos e certas realidades. Esta é a minha contribuição para este combate duma juventude ignorada, como reformado que não pode mais se juntar ao jovem e ir à rua manifestar. O escravo que não tenta se revoltar, não merece que tenhamos pena dele, diz a sabedoria Africana (Steve Biko). Pois a minha revolta não pode ser física, mas pode e é esta contribuição, a análise intelectual de situações que nos devem interpelar a todos como cidadãos. A ruptura desastrosa do contrato entre o povo soberano e o estado, por causa do padrinho que se interpõe: o partido!
Olhar e não ver
A diferença é muito mais profunda do que o significado semântico. Tem a ver com o estado de espírito, tem a ver com o estado do corpo: o nível de satisfacao das necessidades básicas.
De todas as formas, ler não é o mesmo que compreender, da mesma forma que descer não significa necessariamente cair.
Isto vem a propósito de um incidente anódino que me aconteceu há uns dias. A propósito deste pôr do sol. O meu telefone indicava que o pôr do sol seria neste dia às 17H42. Eu quis provar, e das 17H21 até 17H40 fiquei vendo o sol desaparecer. Mas várias coisas acontecem sempre simultaneamente. Enquanto eu contemplava o sol resplandecente daquela tarde, alguém estava a passar penosamente do outro lado da estrada, carregando na cabeça um balde de 20 litros de água. Aí eu disse cá para mim: devo tecer algumas consideracoes sobre este pôr do sol lindo, mas talvez deva ir mais longe. Vou imaginar a diferença de perspectivas entre eu que parei a minha viatura para melhor captar este momento simplesmente lindo, e a senhora pé descalço que olhou para mim, olhou para o mesmo sol que eu fotografiava, tornou a olhar para mim e seguiu estoicamente o seu caminho. Como quem diz: o que você vê que eu não vi, eu que passo aqui todos os dias?
Na realidade, eu vejo no seu olhar interrogador um solilóquio mais prolongado:
enquanto levo na cabeca 20 litros de água, tu te atreves a parar a tua carrinha para tirar uma foto banal de uma tarde quente neste cheiro de carvão e pólvora de Moatize? Donde vens? Nao és daqui concerteza! Turista negro? Em Tete?
E começo a compreender o que ela vê no mesmo pôr do sol que eu estou a contemplar, quando olho para a qualidade da casa de onde ela saiu e para onde ela agora se dirige.
Olhar e ver,
comer e saborear,
falar e dialogar,
ler e compreender,
andar e passear,
passar o exame e saber, (e a propósito)
nação e país,
estado e governo,
chefe e líder.
e tantas outras expressões que se parecem mas que transmitem realidades muito diferentes e até relações profunda e qualitativamente contraditórias, mesmo que se pareçam.
Aí, eu voltei a casa e a minha mente me disse: escreve o que sentiste e pensaste naquele encontro inocente e anónimo. Encontro ou cruzamento? Nem trocamos palavra.
Aquele encontro não teve nada de inocente. Ele representa duas classes, duas situações materiais: da mamã descalça que atravessou a estrada para carretar água do poço público, e ao atravessar, quase ia deixando cair a sua água para escapar a um Mahindra que vinha a toda a velocidade, não se sabe bem para onde, nesta cidade onde as estradas nem se dão para tanta velocidade. Enfim, estava a caminho de casa.
Imagino a família reunida nessa tarde lá em casa: um marido vindo lá das minas com a roupa toda suja, incluindo botas sujas, que precisa de tomar banho, deixar a roupa suja cada dia para ser lavada. E talvez duas crianças que voltaram também da escola com roupa suja, uma família de um mínimo de cinco pessoas, todos precisando de água. Água para preparar a comida. Água para lavar a roupa, água para todos se lavarem.
Quando é que esta senhora tem tempo para contemplar a beleza de um sol que lhe queima? Tem que ir buscar água pelo menos três vezes ao dia. Não tem sapato, e portanto queima o pé no alcatrão que deve atravessar e na areia que deve pisar. De tanto queimar, ficou com o couro resistente, pelo menos mais do que eu.
É claro que Tete está cheio de carrinhas carregadas de tanques de água para distribuir, mas esta família não tem cinco mil meticais para comprar um tanque, e de todas as maneiras, mesmo se comprasse, não tem onde armazenar tanta água. A falta de água passou a ser um negócio. A pobreza de uns faz o negócio, o lucro e a prosperidade de outros. Quem está lucrando até pode não ter culpa da situação, não estou a condenar quem oferece alternativas, mas existe, ou não, um estado que devia ser interpelado por esta situação (e muitas outras)? Canalização? Nem pensamos nisso porque o poder público não menciona nenhum programa de expansão da rede. Quando é que foi a última vez que a municipalidade instalou alguma extensão da rede de água na cidade de Tete?
E eu? Enfim, por causa do meu trabalho, tive a oportunidade de construir uma casa de alvenaria, com ar condicionado, posso pagar os meus 3.000 meticais de eletricidade por mês. A propósito, este é o salário de muita pessoa nesta cidade! Enfim, vir cá fora contemplar o sol a dar o seu último beijo do dia às árvores secas e espinhosas e aos embondeiros de Tete, é um luxo no qual posso suportar vinte minutos de calor, na certeza de que volto logo loguinho para a minha carrinha climatizada, para minha casa climatizada, encontrarei a minha água FIPAG que pago, e corre mais ou menos bem.
Estamos portanto a olhar para o mesmo sol que se despede, mas a partir de disposições físicas e mentais muito diferentes, com estados de espírito diferentes. Olhar não é ver, porque estamos a ver coisas diferentes e a interiorizar, um, a beleza, e o outro, a vida mísera, o beco sem saída de todos os dias. Eu, contente por ter conseguido arranjar uma vida mais ou menos, e ela por saber que vai sair da miséria só quando enfim a morte lhe vier colher. A ironia está no facto de que eu, com uma vida boazinha, gostaria de viver e gozar o mais possível, mas é mais provável que morra antes dela por causa das mazelas do corpo, mazelas essas induzidas por uma vida fácil. Por outro lado, ela gostaria de se despedir desta miséria o mais cedo possível, mas o corpo dela, exposto que foi aos rigores da vida, é mais resistente às doenças e acabrá até vivendo talvez mais vinte anos do que eu. Insh Allah.
Aliás, resignada à miséria generalizada de um país riquíssimo, não está sòzinha. O vendedor de amendoim que passa o tempo ao sol de Tete também não sabe se haverá saída um dia. E tantos outros dramas humanos.
A propósito, este vendedor de amendoim é no fundo o espelho do que eu sou. A sua pele escurecida por exposição excessiva ao sol, é semelhante à minha pele escura. É meu irmão. E isso faz-me mal porque as oportunidades que este país pode oferecer ao seu povo pobre não estão a chegar, faz agora alguns anitos de independência. E se ele está na rua a vender, não está na escola a aprender, o que reforça o ciclo de pobreza. Não é com amendoim que ele vai poder pôr as suas crianças na escola quando crescer. Aliás, este amendoim nem dá para fazer poupança nenhuma. Mal dá para pôr comida na mesa para os outros irmãos e para os pais!
Esta pobreza num país reconhecidamente rico interpela-nos, sobretudo depois de 49 anos. Alguém disse que entretanto tivemos 16 anos de guerra. Entretanto também, Cahora Bassa e Moatize produzem riquezas fabulosas que se exportam permanentemente. Dessa riqueza, o pobre vendedor da rua só vê e recolhe a poeira e o cheiro de pólvora de Moatize. Tão acostumado a isso tudo ele está, que quem sente esse cheiro e se protege dessa poeira sou eu, que me vou fechar em casa a ver programas de uma DSTV muito cara. Até posso pagar!
O que é lindo e belo para mim, é carrasco e duro para o outro, neste mesmo espaço. O que me interessa a mim esteticamente, faz mal ao outro corporalmente. No mesmo espaço.
Não é tempo para filosofar, acabo por concluir. Sendo assim, quando é que então chegará o tempo para admirar a beleza da criação de Deus? Depois de vermos resolvido o problema da pobreza. Talvez visto desta maneira, compreendamos quem faz o turismo: aquele que já tem problemas de fome, água e saúde resolvidos. Vista a questão deste angulo, seria facil compreender porque é que não promovemos o turismo como uma indústria para Moçambicanos. Uma grande pena, na realidade.
Por ti, senhora, que nem vais ler esta ode, não posso nada, estou também no pôr do sol da minha vida! Um pôr do sol que espero seja longo, mas é sempre pôr do sol.
O provérbio latino vem finalmente aqui a propósito: primum manducare, deinde philosophari em portuges: primeiro comer e filosofar depois (enfim, se sobrar tempo, humor e imaginação!).
Jose
Tete, Setembro de 2024
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