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CRONICAS DE TETE -5

1.      INTRODUCAO


Continuamos a escrever sobre a situação social da nossa Província simplesmente porque a conhecemos melhor do que as outras, apesar de termos trabalhado e vivido em Manica dez anos e em Maputo sete anos, lá para as décadas setenta e oitenta, muito longínquos para hoje reclamar conhecimento algum.


É entretanto muito possível que esta crônica se aplique mutatis mutandis a todas as outras províncias do país, tal é o volume de análises coincidentes que os jovens moçambicanos produzem nas redes sociais.  É tao apaixonante o debate que até o meu telemóvel me informa que estou a exceder o tempo saudável de leitura do telemóvel (um programa que existe nos telemóveis actuais e que encomendo à juventude).


Estou consciente de ter uma perspectiva muito afectada por ter vivido, trabalhado e convivido com outras culturas, outras maneiras de ser, de viver, de agir e de interagir: Em média passei três anos em cada um de 12 países em Africa, e na Suíça.  Posso afirmar que nestes países, com poucas excepções, o ser humano é tratado com carinho e dignidade pelas suas instituições nacionais.  Francamente, muito melhor do que em Tete, embora a comparação não se deva fazer entre província e países.

 

2.      A FORMA


Nesta crónica abordamos duas questões: uma de forma e outra de relacionamento, de contrato social (consequentemente, uma questão de fundo).


Na questão de forma: sabemos que cada trabalhador se afirma em autoridade no seu local de trabalho, dependendo do grau de formação e compreensão.  O exercício dessa autoridade dependente muito dos seus supervisores. 


O exemplo vem sempre de cima.  


Ao abordar um banco da praça de Tete, a primeira pessoa com quem o cliente se depara é o guarda.  E o guarda gosta de se mostrar como parte de uma estrutura de comando.  Dá ordens de como a fila se deve organizar, permite ou impede a entrada no banco (enfim, nunca impede, mas controla).  Segue ordens de trabalho.  Só que ao seguir ordens, às vezes não exerce julgamento, primeiro porque julgamento é a última ferramenta de um corpo arregimentado por deontologia da profissão.  Segundo, porque não tem certeza, nem incentivo, nem autonomia.


A honestidade nos obriga a abrir aqui o devido parênteses para louvar a atenção que o guarda da banca de Tete geralmente tem tido pela idade e pela mãe grávida.  Dentro deste ambiente, isso já é muito digno de menção.  E fechamos o nosso parêntesis.

Um funcionário gentil do banco telefonou-me a pedir cópia do meu BI.  Eu acorri logo ao banco e ao chegar deparei-me com um guarda simpático, mas cansado.

-        Peço para entrar e entregar um documento que o banco me pediu.

-        Está bem, mas o senhor vai para a bicha.

-        O banco é que me pediu para vir, como vou para a bicha?

-        Não está a ver outros velhos esperando na bicha?

-        Não faz sentido.  Eu nem tinha plano de vir ao banco.

-        Paciência, não há como!

-        Posso então deixar o envelope consigo para entregar lá dentro, uma vez que não tenho outro negócio a tratar? 


A esta altura estou irritado e falo em voz alta. Ele recusou-se. O guarda segue instruções e não compreende a minha lógica. Se calhar deve-me julgar como um velho do partido  cheio de si que se acha mais especial do que os outros que esperam pacientemente.  Nem procurei ver na expressão facial dos outros na bicha, se o meu argumento lhes fazia sentido.  Possivelmente a lógica nem lhes interessava, de tão cansados que estavam numa bicha que se tornou cultura.  Estão resignados a este tratamento que passou a ser normal.

 

3.      O BANCO, PARTE ACTIVA DO CONTRATO SOCIAL


O banco intimida e foi formatado para intimidar o pé descalço desde os tempos coloniais e a sua índole não mudou muito.  E isto me leva à questão de perspectiva.  Neste ponto, gostaríamos de relatar duas situações, a primeira referente à relação entre o banco e o cliente plebeu.  Que mais não é do que a manifestação da segunda; a segunda sendo a relação entre o povo e o estado.


É muito possível que o funcionário do banco se veja apenas como um dente da uma engrenagem financeira que lhe ultrapassa e sobre a qual ele não tem domínio.  Por isso não podemos exigir que ele se sinta parte de um sistema de relações entre o cidadão e as instituições- parte de um estado- e portanto parte de uma relação do contrato social.


O banco gere a movimentação de finanças do depositante e tira proveito no manuseamento destas movimentações e depósitos.  Assim, o depositante é o elemento vital, sem o qual, não existe nem banco nem funcionário bancário.  Logicamente, o banco tem interesse em se relacionar bem com o depositante, maioritariamente o pequeno depositante do comercio informal, das bancas do mercado, do vendedor da berma da estrada, do vendedor de frutas, e ocasionalmente do empreendedor médio.  Estamos falando de Tete.


Deixar o depositante na bicha, no exterior das instalações, nas condições climáticas e de poluição atmosférica de Tete nos parece falta de imaginação.  Não falta nem espaço coberto para aluguer, nem cadeiras de plástico baratas no mercado.


Assim, obrigar o cliente a esperar na bicha para depositar, é o mesmo que dizer a ele:

 “queres dar-me dinheiro para a minha existência? Espera um pouco, eu vou aceitar o seu dinheiro quando estiver mais confortável”.

Não era tempo de os bancos se organizarem de forma diferente, com um investimento mínimo, para demonstrar respeito e apreciação pelo pequeno depositante?  E nos dias de pagamento de propinas escolares!!!


Pois esse pequeno depositante a quem não se dá a devida atenção individual é ele que faz funcionar a economia e as finanças.  Os grandes empreendedores, esses nem se preocupam porque aprenderam a contornar o sistema local para se colocarem na grande liga de jogadores nacionais e mesmo transfronteiras.


Por outras palavras, não é “grão a grão que a galinha enche o papo”?


Nem todos os bancos pertencem ao estado, mas todos espelham o tipo e qualidade de relação estabelecida entre um povo e um estado que se esqueceu que é mandatário do povo soberano, passando assim este estado a assumir um comportamento de soberano, mais bem caracterizado de suserano.

 

4.      TUDO UM REFLEXO DO ESTADO


Por causa da rejeição popular das eleições fraudulentas desde Novembro de 2024, o estado vê-se obrigado a procurar formas de demonstrar que está em contacto com o povo.  Só que, de tanto tempo a ignorar o tal povo, perdeu até a arte de comunicar com ele. Um povo mal vestido, um povo humilde que migrou das zonas rurais onde a saúde, a educação e o emprego não estão ao alcance, para as periferias insalubres da cidade.  Uma vez na cidade, para obter emprego que não seja informal, deve ter muito dinheiro de suborno que nem por isso lhe garante emprego nenhum.  Com esse povo, o estado já não sabe como conversar, como se relacionar, cinquenta anos passados.


Para ilustrar esse diálogo seco e difícil, vamos relatar um encontro casual com uma campanha de rua organizada pelo Gabinete Provincial de combate a corrupção de Tete neste mês de Março.  Estávamos na bicha do notariado quando fomos acostados por uma senhora promovendo uma mensagem de denúncia de casos de corrupção.  Estando na bicha, tínhamos tempo para discutir e compreender a campanha. E assim o fizemos. 

-        De que trata a sua campanha?

-        Trata de encorajar a denúncia anónima de casos de corrupção na função pública.

-        Que tipo de corrupção?

-        Todos os tipos. Por exemplo um aluno que compra as notas pagando dinheiro ao professor.  Pode-se denunciar de forma anónima. 


Ficamos falando cerca de cinco minutos e ficou claro:  Existe medo de se falar da grande corrupção, por grandes empreendedores e políticos.  Os condicionalismos para o emprego no estado; no nosso caso específico, a reparação da estrada Tete-Zâmbia, no  entroncamento da Matema, reparação essa que se faz cada ano depois da época das chuvas! Etc, etc.  Desse tipo de anomalias e corrupção na contratação não se fala.  Quer alguém apostar na repetição deste contrato depois das próximas chuvas?  E quer ver que se tratará da mesma empresa?  Pelo peso da questão,  nem ela conseguiria explicar como estes casos grossos podem ser denunciados. Anonimamente. Por isso poupamos a senhora do embaraço de questões que não estão ao seu alcance.

 

5.      CONCLUSAO


Não valia a pena grelhar a senhora cheia de boa vontade e dedicação ao seu trabalho.  Mas não nos escaparam dois aspectos:

  • O estado só comunica em Português numa Província onde as principais línguas nacionais são o Nyungwe e o Nyanja, mais acessíveis a uma população heterogénea, cujo domínio do português é deveras fraco.  Existe e persiste a ilusão de que o Português abrange mais pessoas.  Valorizando o Português, vamos menosprezando as línguas nacionais.  Só o estado é que tem a capacidade para valorizar a nossa cultura, incluindo através das línguas nacionais.  É para ele que olhamos.

  • A funcionária vinha vestida naturalmente com o uniforme da sua instituição.  Infelizmente, o tal uniforme incluía umas calças encarnadas, símbolo de uma função pública politicamente alinhada.  As cores do partido entraram na função pública e no estado, e demonstram claramente (enfim, encarnadamente) que o estado continua e persiste partidarizado.  Nada a ver com a portadora do uniforme, mas com a representação do estado, uma tarefa que lhe incumbiram ao mandá-la sentar-se na praça.


Talvez ela se tenha sentido um pouco inútil; ao furtar-se ao sol de Tete, respirando o enxofre das explosões das minas abertas de carvão de Moatize, que o vento leva sempre nesta direção.  Para cima disso, as pessoas não pareciam nem curiosas nem interessadas na sua mensagem.  Até se afastavam de maneira subtil e não tão subtil.  Não se afastavam da pessoa, mas da cor do uniforme.


É mais cego quem não quer ver do que aquele que não pode ver.


O estado está prisioneiro e tem dificuldades de se conectar com o povo.  A língua, o uniforme partidário, o tratamento desse povo mal vestido, mas com a sua dignidade intacta: dignidade que o povo sabe desligar quando vai às repartições procurar serviços do tal estado.


Voltemos ao banco: E qual foi o desfecho no banco?


Sendo conhecido pelo banco, foi fácil entrar e deixar o documento em menos de um minuto, e sair.  Ao sair, não falei com o guarda à porta, mas fiquei silenciosamente falando com ele no meu espírito:

você está cumprindo ordens, você está habituado ao regimento, portanto não tem espaço para excepções porque tais excepções não lhe foram comunicadas. Desculpe a pequena altercação onde eu me excitei desnecessariamente.”
E quanto a vocês outros compatriotas na bicha cá fora, ouvistes a minha altercação excitada com o guarda.  Como interpretam isso, não sei.  Só tenho pena que o banco lhes faça esperar para lhe oferecer dinheiro do vosso suor, e que para isso tenham que suar mais uma vez na bicha.  Se aprenderam algo da minha demonstração, tudo bem.  Mas compreendo se o estado vos intimida através das suas instituições.  Só que, não sou herói nem líder comunitário, nem pretendo ser.  Apenas minimizo o meu próprio incómodo.”

Até à vista

Canhandula

Tete, Maio de 2025



 
 
 

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