Negociar o futuro: porque é que será vital para a África obter melhores contratos?
Artigo de 10 de Maio de 2023 de Richard Dion, Conselheiro-mor do CONNEX Support Unit, sediado em Berlim. Ele assinala que este artigo constitui um ponto de vista pessoal como autor, e não do seu empregador, nem da sua direção, do seu Conselho de Direção, muito menos dos seus financiadores.
1. Tradução livre de Antonio Jose Canhandula
A tradução começa
Os contratos que a África vai assinar nos próximos meses terão um impacto ao longo de todo o século.
Não se passa um dia no Continente que não se fale sobre questões de infraestrutura, extração mineira ou de energia renovável. As infraestruturas em questão vão desde as pontes aos caminhos de ferro e portos; a questão da extração mineira em particular, evoca a necessidade de se evoluir para uma sociedade mais justa em que a pobreza energética seja resolvida, enquanto os minérios necessários para essa transição continuam a ser extraídos. Os governos e os investidores estão finalmente a prestar a atenção que merecem as energias renováveis, e ambas as partes estão a levar mais a peito o potencial enorme de África. O mais que não seja por causa apenas da imensidão da abrangência destes projetos – triliões de dólares de investimentos que têm a capacidade de afetar a vida de biliões de almas.
Neste âmbito dos setores de investimentos, o papel mais importante cabe aos contratos de investimento, dado o interesse sobre os seus potenciais e as suas possibilidades, potenciais e possibilidades essas que não terão significado maior sem um acordo entre os governos e os investidores sobre as modalidades do tal contrato de investimento.
O modelo multidisciplinar do contrato
Muitos de entre nós e o público em geral pensamos que um contrato não é mais do que um fenómeno exotérico, um acordo entre meia dúzia de juristas que se movimentam de um lado para o outro e discutem os detalhes de um projeto. A realidade é muito mais do que isso. Trata-se da construção de um edifício financeiro, que traz à tona as seguintes questões:
O projeto está baseado em que tipo de modelo, criado por quem e com que visão?
O modelo teria sido criado pelo setor privado?
Como é que esse projeto é influenciado pela visão do governo sobre os potenciais de receita fiscal e de criação de empregos? ou será que se trata apenas de acarretar benefícios e proveitos para a empresa interessada, dependendo da forma como os projetos foram concebidos?
Sobre a questão do modelo geológico: quem faz as estimativas das reservas minerais? A empresa exploradora? Uma vez que a geologia tem a ver diretamente com o contrato e que os avanços tecnológicos podem trazer uma mais-valia futura ao projeto, porque não contrastar esses dados com uma opinião terceira de um parceiro não interessado no projeto? Trata-se aqui de explorar a mais-valia. De forma geral em África, a filosofia dos recursos passou a ser: explorar, extrair e exportar, enquanto a mais-valia desses minerais passou a ser criada algures, em particular na Europa, América do Norte e na Ásia. Agora os governos Africanos começaram a rejeitar este modelo e a exigir que muitos dos aspetos da criação da mais-valia emanem da manufaturação local. Contudo, como é que essa intenção é refletida nos contratos? A melhor das vontades da parte de todos os intervenientes seria condição suficiente? Ou passaria pela obrigatoriedade da formação dos cidadãos para os empreendimentos locais?
Trata-se aqui também de aspetos relativos ao contexto social e ambiental. Que padrões são aplicados nos contratos? Serão padrões específicos ou inspiram-se nos melhores padrões internacionais? Cadê os padrões de funcionalidade da IFC (International Finance Corporation), que tem reputação de serem os padrões mais abrangentes, cobrindo aspetos tais como a saúde, a segurança, a proteção laboral e o meio-ambiente, populações indígenas e o reassentamento?
Trata-se apenas de clausulas simples, não é?
Em todo o tipo de contratos existem várias cláusulas-padrões, tais como a estabilização, a força maior, as provisões laborais, entre outras. O que parece a olho nu como mais uma cláusula inócua pode ter consequências pesadas para os governos e para as gerações futuras, se a cláusula for tomada de forma ligeira.
Cáusulas de estabilização: Como um Diretor Executivo de uma empresa teria dito, “as cláusulas de estabilização têm o objetivo de impedir que um Presidente acorde uma bela manhã e decrete a destruição de toda a base econômica de um projeto”. Isto até parece uma paranoia, mas estas situações na verdade já aconteceram. A questão que se deve pôr é a seguinte: o que se pretende estabilizar? Trata-se apenas do fundamento econômico do projeto? E o que acontece com a evolução dos padrões de saúde, segurança, proteção laboral e meio-ambiente? Por exemplo: um ar condicionado num camião a 40C graus de temperatura, não se poderia interpretar esta necessidade como uma questão de direito humano?
Força maior (Force majeure) é uma das cláusulas tradicionais mais enraizadas e tendente a ser consultada sempre que acontecem desastres naturais ou causados pelo homem; ela estabelece regras de gestão, ajustamento e revisão de projetos em situações de acontecimentos extraordinários imprevisíveis. É uma clausula que ganhou importância particular no contexto da pandemia (COVID), durante a qual tanto os investidores como os governos ficaram tentando compreender as suas consequências. É muito provável que no futuro força maior passe a ser uma cláusula muito mais detalhada, e venha a ganhar maior atenção na mesa de negociações.
As Cláusula operacionais podem ser interpretadas como disposições que obrigam a empresa a “fazer uso efetivo ou perder o projeto”. Elas têm importância particular na mineração, quando os governos tem a noção de que os recursos do país estão em alta demanda. A empresa pode estar a marcar o passo e a “sentar-se” sobre os recursos para uma extração no futuro, ou para virem a ser revendidos a preços especulativos. As cláusulas operacionais servem para forçar as empresas a extraírem efetivamente os recursos que contrataram.
Finalmente toda a discussão em torno da questão de justiça fiscal passa a ser de importância capital. Por exemplo, quais são as consequências da erosão do imposto de base e da exportação dos benefícios dos contratos (BEPS), e qual seria para os governos Africanos a relevância da taxa universal de 15%?
Temática mais importante
Encontramo-nos numa situação em que os governos recorrem com frequência crescente às parcerias Público-Privadas (PPPs) para garantir o fornecimento de serviços e bens aos cidadãos com o mínimo de riscos, tais como a construção e gestão de portagens rodoviárias, de um porto e quiçá de um aeroporto. Desta maneira garante-se a prestação de serviços; contudo, tratando-se do setor privado, esta prestação custa caro. Cabe aos governos estarem cientes das consequências destra forma de contratação, não apenas no orçamento atual, mas também na sustentabilidade financeira futura de tais compromissos.
Como ficou brevemente dito acima, muitos governos estão empenhados na ruptura do modelo de simples oferta de recursos, ignorando a mais-valia, a qual é adicionada algures. Desejam passar a jogar um papel mais preponderante na produção desses recursos. E para que isso aconteça, as empresas terão que obedecer a um leque de condições que garantam um investimento estável e que permitam aos governos jogar o seu papel regulador da planificação e de outorgacão de autorizações das operações. Os governos podem estudar as possibilidades da manufatura local e avaliar estrategicamente a presença ou ausência de uma massa crítica de recursos necessários para tal (nem todos os países podem manufaturar) e aprender da experiência de outros países.
As técnicas de negociação- Solicitar apoio em caso de necessidade
Logo à partida, a mesa de negociações encontra-se desequilibrada. De um lado se encontra toda uma turma de juristas, geólogos, técnicos em modulação financeira, engenheiros de infraestruturas, e muitos outros mais. Os membros destas equipas têm muitas vantagens pelo fato de terem participado em várias outras negociações pelo mundo fora, e sabem quais as regiões geográficas que se adaptam a que tipos de modelos financeiros, têm uma vantagem tecnológica para um levantamento geológico local e servem-se da tecnologia para reduzir os custos de produção (induzindo a maiores proveitos).
Muitos governos (Africanos) têm uma experiência muito limitada na arte de negociação de contratos de investimento, uma vez que essas ocasiões se apresentam poucas vezes, o que os leva em muitas ocasiões a “deixar muito dinheiro na mesa de negociações”. As implicações de contratos de 25 ou 30 anos para as gerações futuras são muito claras, sobretudo em África, onde a juventude está em franca explosão.
Temos um exemplo recente no Panamá, que mostra até que ponto uma negociação sobre uma mina de cobre pode trazer resultados. Com o apoio de um perito em modulações financeiras, foram concebidos durante 60 dias modelos alternativos de financiamento que permitiram a utilização de uma estratégia negocial da qual resultou num acréscimo de lucros de $15 biliões a mais durante os 40 anos da vida do projeto, para uma população de menos de 5 milhões de pessoas. Eis aqui um exemplo que ilustra a eficácia e o valor de um apoio negocial multidisciplinar, à medida, de curta duração e focalizado sobre um produto específico. Muito mais importante ainda, foi o facto de que o governo passou a sentir-se mais reforçado e capacitado para atingir este tipo de resultados em negociações futuras.
As implicações para as gerações vindouras dos contratos de mais de 25 anos de vigência são profundas, sobretudo para a África, onde a juventude constitui a maioria da população. A estudante de 4 classe de hoje será um dia uma jovem de 40 anos e este tipo de contrato afetará a maior parte da sua vida. Para o bem-estar desta jovem, e para o bem-estar de tantos outros biliões de almas, a África tem o dever institucional, moral, político e ético (adições enfáticas minhas) de negociar melhor.
Fim da tradução
Tradução do artigo: Negotiating the century: why Africa must demande better contracts, que apareceu a 10 de Maio de 2023 ao qual acedi no dia 13 de maio de 2023.
2. Lições e considerações pessoais: Negociar em nome do país, do povo e do futuro.
Porque é que este artigo me pareceu tão importante ao ponto de o traduzir e republicar? Porque, sendo eu original da Provincia de Tete, ou na verdade de qualquer outra Província de Moçambique onde grandes empreendimentos estão em curso, vejo e sinto na minha vida e na pele de todos os compatriotas as consequências econômicas, sobretudo as consequências humanas e sociais da exploração das riquezas minerais. Esta exploração deve com certeza continuar para o bem do país e isso não é passível de questionamento. Entretanto existem certas áreas de importância capital para o futuro do nosso país que devem ser revistas com coragem objetiva, com projeção para o futuro, e com atenção ao bem-estar imediato das populações. Mais tarde poderemos falar de outras questões importantes, quando a questão do poder público e da pertença política for menos melindrosa, menos ameaçadora e menos exclusivista. Eu não pertenço e nem desejo pertencer a partido nenhum. Contudo, a nossa vida já é política e a gestão da coisa pública nacional é de direito público e de importância vital para todos nós cidadãos. Essas áreas são por enquanto:
O famoso CSR: Responsabilidade Corporativa Social da empresa: o que temos vindo a assistir na maioria dos casos são pequenos empreendimentos de relações públicas só para “o Inglês ver e o Francês sorrir”. Distribuições de cadernos, um lanchezito episódico para um orfanato, acompanhados de camisetes de cores garridas para acentuar a visibilidade, mas desprovido de conteúdo, e sem seguimento. E o caso raro da construção de um centro de saúde longe de populações. Toda uma campanha de visibilidade que mal disfarça o vazio de tais empreendimentos de suposto valor público. Penso eu que o CSR devia ser objeto de discussões e negociações com o Distrito onde elas se propõem, mediante conhecimento público da política de Responsabilidade Social da empresa.
Compensação imediata pela deterioração de infraestruturas públicas em função da exploração e do transporte mineiro: tom o como ponto de partida o que conheço: o estado de toda a estrada de Moatize a Chirodzi, das estradas urbanas nas cidades de Tete e de Moatize. Esse seria o CRS mais eficaz e mais duradouro. Sem falar da questão que tão pouco se tem levantado em público: as poeiras de carvão que pairam sobre as cidades de Tete e Moatize e os seus efeitos nas alvenarias familiares, individuais e comerciais, assim como na saúde das populações destes aglomerados urbanos e das povoações.
Transferência local de competências técnicas nos grandes empreendimentos: São precisos hoje muitos técnicos estrangeiros dos países investidores. Normal e aceitável. Será a mesma situação e estaremos perante as mesmas explicações daqui a vinte anos?
Criação local da mais-valia: ela pressupõe uma formação técnica propositada para que esse objetivo se realize dentro de dez a vinte anos. A mais-valia não se realizara até que a questão levantada no ponto 3 seja resolvida.
Para que estes objetivos todos se realizem, deve existir confiança entre o poder central em Maputo e os poderes Provinciais e Distritais, afim de transferir/delegar decisões operativas e de supervisão para a Província, que está melhor posicionada para apoiar o Distrito no prosseguimento destes objetivos, que no final de contas são nacionais, mas que não podem ser geridos eficazmente à distância. A questão política da descentralização administrativa passa a ser inescapável. Porque ela (a descentralização) é também econômica e de justiça municipal.
Jose, 15 de Maio de 2023
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