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LIDERANCA AFRICANA FALHADA A PARTIDA

Writer's picture: canhandulacanhandula

A.    Introdução


Neste artigo, viemos exprimir as nossas angústias pelo futuro do nosso Continente, do nosso país.  Um futuro comprometido por um passado de escravatura que deixou em nós um complexo persistente perante a cor.  Temos um passado que não investigamos o suficiente para saber como nos governávamos antes de o colono nos vir infestar com a sua cultura, filosofia e maneira de ver o mundo.  Tudo quanto acabamos herdando aquando da independência, incluindo a língua, a maneira de gerir o estado, etc, assumimos como a melhor alternativa.  Mas rapidamente deixamos de lado o fundamental: o contrato social entre o estado e o soberano.


Contudo, hoje não vamos falar disso tudo.  É uma introdução apenas para sugerir que se decidimos herdar, ou nos pareceu menos confuso continuar com os sistemas que serviam o colono, devíamos questiona-los,  compreender a sua profundeza,  e pedir aos nossos pensadores para nos inventarem formas apropriadas de governação que tenham em conta de um lado o que funcionava bem, e do outro, a nossa cultura e os nossos valores positivos.  Ainda vamos a tempo.


Hoje viemos apenas falar das relações entre estados Africanos, da influência/interferência estrangeira nestas relações, e das perspectivas de realização da soberania neste contexto.  E para discutir este tema, retivemos três situações.  Gostaríamos  imenso que esta reflexão não só suscite reações e respostas, correções e exemplos, tudo num espirito construtivo, mas também que quem tiver acesso às instâncias do poder, faça chegar esta e outras reflexões que já viemos fazendo no nosso site, afim de que elas provoquem a esse nível, a lucidez e a coragem necessárias para novas reflexões sobre a maneira de gerir a coisa pública.  E assim, renovar o Contrato Social.


Sobre as situações que desejamos discutir, devemos dizer que não discutimos coisas que não conhecemos.  Com efeito, e com o orgulho de ser Moçambicano e de representar individualmente o meu país:

  1. Sediado em Genebra, eu fui chefe das operações de refugiados na África Ocidental que visitei repetidas vezes.  Ademais, fui Representante do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) sucessivamente na Nigéria, Serra Leoa e Niger.

  2. Também fui Representante Adjunto do ACNUR na RDC, altura em que se consolidava a presença da Missão das Nações Unidas (MONUC-MONUSCO), quando o país contava com quatro vice-presidentes, na transição para Joseph Kabila.  Em particular, fui chefe de equipa de urgência do ACNUR em Goma. Visitei e  conheço toda a zona fronteiriça entre a RDC, o Burundi, o Ruanda e o Uganda.

  3. Fui a Cabo Delgado (Mueda) a partir da Tanzânia à procura do famoso rubi.  A PRM ficou com o pouco que comprei.  Como Representante do ACNUR na Tanzânia também tive discussões difíceis acerca dos Moçambicanos de Cabo Delgado em busca de refúgio no Sul da Tanzânia em 2020, os quais foram sendo retrocedidos à medida que entravam, em cooperação entre os dois governos.  E trabalhei muito com os refugiados Ruandeses, Congoleses e Burundeses na Tanzânia, o que me deu a oportunidade de conhecer a fundo a história de deslocações forçadas de populações e dos conflitos desta zona dos Grandes Lagos.


Assim, e nessa ordem, discutimos neste artigo:

  1. A Aliança dos Estados do Sahel (AES) e a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).

  2. A Republica Democrática do Congo (RDC) e o Ruanda.

  3. Moçambique e a situação de Cabo Delgado.


A situação de Moçambique está em último lugar porque as discussões dos dois primeiros pontos têm uma incidência particular, importante e atual na gestão nacional do conflito em Cabo Delgado[1].  Dizíamos  já no artigo anterior sobre as Estratégias de Desenvolvimento Nacional 2025-2044, que a estratégia prevê  uma redução do número de deslocados internos ao longo dos anos.  Como se a situação de deslocados internos em Cabo Delgado fosse ou passasse a ser uma característica demográfica permanente da situação do nosso país.  É nosso argumento que esta situação seja resolvida definitivamente, e não que entretenhamos um conflito a níveis controláveis, para figurar até numa estratégia nacional de 20 anos!  Reduzir, não. Acabar, sim.  Desculpem-nos este pequeno desvio e vamos logo aos temas propostos.

 

B.     Aliança dos Estados do Sahel/África Ocidental


Embora discutamos aqui a existência da Aliança dos Estados do Sahel (AES), o Sahel compreende toda a banda central de África, que vai do Senegal até a Somália, incluindo, portanto, países tão diversos como o Mali de um lado, o Chade no centro, Somália e Djibouti no extremo Leste do Continente.


Mas para este caso, limitamo-nos aos três países da Aliança: Mali, Burkina Faso, Niger, estados que celebraram um acordo de parceria, defesa mutua, e confederação.  Estes países têm uma história colonial comum, o colonialismo Frances, que por sinal continuou dominante mesmo depois da independência colectiva em 1960, nas esferas políticas, econômicas, financeiras, diplomáticas e militares, até muito recentemente em 2021 (Mali), 2022 (Burkina) e 2023 (Niger).  Esta relação colonial francesa, que ainda persiste nos outros países Africanos antigas colônias é caracterizada pelos seguintes elementos desgraçados, entre outros:

  • A obrigatoriedade do uso da língua francesa, que o Burkina Faso e o Mali já denunciaram.

  • Os acordos militares que preveem a formação de quadros destes países exclusivamente na França, o fornecimento de equipamento militar apenas pela França, o dever de se juntarem à França em caso de conflito deste país com qualquer outro país ou em caso de agressão.

  • A presença de bases militares francesas nos seus territórios.

  • A primazia da Franca na exploração dos recursos naturais no solo e subsolo destes países.  Todos os recursos do subsolo a partir dos cinco metros para baixo pertencem a França.   

  • A primazia da França na adjudicação dos concursos comerciais públicos, incluindo os de construção, trabalhos públicos e serviços urbanos tais como a água, o saneamento e o transporte colectivo.  

  • Enfim, a moeda nacional/regional é uma moeda colonial comum a muitos países da África Ocidental Francesa, perdoem-me este exagero qualificativo.  Muito se pode ainda dizer sobre a dependência financeira destes países do Tesouro Frances, tais como a obrigatoriedade de depósitos de divisas no Tesouro Francês, e as restrições na sua utilização, submetidos a juros comerciais, como se de empréstimos se tratasse. À discrição do Ministro francês da Economia e Finanças!


Com os golpes de estado nos três países, sem derramamento de sangue e com adesão popular extraordinária, criou-se um escândalo de ruptura da relação neocolonial.  Todas as forças da OTAN e da União Europeia foram expulsas destes territórios.  A França e outros países Europeus não desejam que este exemplo se propague porque isso periga a exploração quase gratuita de matérias primas baratas, e põe em risco a estratégia europeia de considerar o Sahara como a sua fronteira austral.  Estas forças estrangeiras continuam rondando nos países vizinhos à procura de um returno da dominação territorial.


De repente, a África começa a afirmas a sua soberania e isto não agrada aos países ocidentais, que vivem e continuam ricos à custa da nossa pobreza.  Em vitude desta nova realidade, como reage o Ocidente?  Como sempre: dividir para melhor reinar, usando os seus vassalos locais, neste caso congregados na Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental (CEDEAO).  E uma campanha mediática virulenta, condescendente e saudosa.


Sob pressão ocidental, em particular da Uniao Europeia com a Franca na vanguarda, a África começa a impor sanções contra outros estados irmãos Africanos.  Desde quando sanções são uma linguagem Africana? Desde quando um grupo de países africanos se propôs para enviar forças militares a pretexto de restaurar a  famosa “democracia”?  Foi isso que a CEDEAO decidiu: Sanções, incluindo o fecho de fronteiras, o corte de energia elétrica transfronteiriça, o congelamento de suas finanças no Banco regional BECEAO, o envio de uma expedição militar e a suspensão dos três países de participar na CEDEAO. 


Em contrapartida, os três países se uniram e prometeram defender-se juntos.  Uma vez excluídos da CEDEAO, retiraram-se definitivamente de uma organização disposta a lhes fazer guerra.


De repente, a CEDEAO se encontra sem saída: A intimidação falhou, não pode fazer guerra.  As sanções, o fecho de fronteiras, a agressão militar, todas estas medidas violam os princípios fundadores de cooperação regional da CEDEAO.  Assim se instalou uma crise política regional de grandes proporções.  A mesma CEDEAO precisa de  controlar a crise e readmitir os três países, os quais já se retiraram sem retorno. É preciso evitar a desintegração da CEDEAO.  Mas como as relações foram mal geridas, quem põe o guizo ao gato?  O Togo tentou, mas tem as suas limitações políticas internas. 


Aí surgiu na cena o novo, inocente e jovem Presidente do Senegal, Bassirou Dioumaye Faye.  Os velhos dirigentes, agora sem alternativas diplomáticas, atiraram Dioumaye ao fogo para negociar o regresso dos três países à CEDEAO e evitar assim a sua desintegração.  Só que Bassirou, antes de ser presidente, nunca foi Ministro, nunca foi negociador, nunca foi diplomata.  Que capacidade tinha ou tem de convencer os outros presidentes enquanto aprende a gerir as complicações do seu próprio país?


Estamos assim perante chefes de estado velhos e experimentados mas envergonhados de terem  destruído as suas próprias pontes e agora atiram o jovem presidente para uma missão perdida à partida.  Má diplomacia colectiva exercida no esforço de querer agradar uma França ainda imbuída da mentalidade colonial.  Estamos assim perante uma ignorância presidencial colectiva do  papel histórico nefasto da França através do mundo.  Seria apenas necessário recordar o papel da França no Biafra, o seu comportamento em Haiti, para um chefe de estado Africano saber gerir relações entre estado ditos irmãos e resistir ao assalto neocolonial à CEDEAO.


Falha total de liderança

  • A juventude não tem mais confiança nestes chefes de estado veteranos dos círculos do poder. 

  • É esta juventude que defende de forma aberta e inequívoca os governos militares do Niger, Burkina Faso e Mali. 

  • É esta juventude que contesta de forma aberta e inequívoca os governos eleitos “democraticamente” do Quenia e de Moçambique. 


Os governos militares do Mali, Niger e Burkina Faso estão a fazer realizações inimagináveis, tornando estes países ditos pobres em países com sucessos econômicos: o Burkina Faso pagou a sua divida interna de 4.2 biliões de dólares desde que Ibrahima Traore veio ao poder há apenas dois anos.  Ele nacionalizou as minas de ouro e construiu uma fábrica de conserva de tomates, a produção cerealífera aumentou.  O Mali nacionalizou as minas de ouro, libertou Kidal e o Norte do Mali, onde a Argélia explorava o gás e o petróleo Maliano, rompeu com os acordos de Argel, que encobriam esta exploração desenfreada a coberto de terrorismo. O Niger nacionalizou as minas de urânio, que a França comprava a 8 Euros/kilograma, enquanto o mesmo quilo valia 400 Euros no mercado europeu, permitindo a França de ser exportadora de energia para outros países europeus. A burla acabou. 


Não pretendemos fazer apologia de governos militares, mas são os militares que acabaram com a ditadura em Portugal que facilitou a independência de Moçambique e Angola.  Só para referência!


Todos estes três países

  • Se retiraram definitivamente de uma CEDEAO vassala da Europa;

  • Romperam a maioria dos acordos coloniais com a França, em particular os acordos militares;

  • Recuperaram as minas de exploração de ouro e uranio de mãos estrangeiras;

  • Desmantelaram todas as presenças militares estrangeiras ocidentais nos seus territórios.


Apesar de chamar estes países de pobres, a França não quer se retirar e agora se estabeleceu militarmente nos países vizinhos, à espreita.  Países pobres!!!


A desestabilização contra estes e outros países Africanos vai continuar de forma camuflada e a luta apenas começou.  A CEDEAO é um instrumento neocolonial colectivo de Presidentes, não do povo.  Ela representa uma falha colectiva monumental de liderança, em particular do Nigeria, do Gana, da Cote d’Ivoire e do Benin, no espaço CEDEAO, e da Argélia no Norte de África.

 

C.    A Situação a Leste da RDC


Em circunstâncias mais ligeiras nós diríamos: porquê simplificar se complicado também dá?  Só que nesta situação, nem ajuda simplificar uma equação que é muito complexa.  Nas análises dos meios de comunicação social, nos discursos de parte e doutra, todos tentam simplificar o que devia ser tratado com  mais discernimento.


Não se pode analisar a situação a Leste da RDC sem analisar a própria RDC no seu todo.  Entretanto, nesta análise vamos reduzir as nossas considerações e tratar de quatro dos muitos problemas:

  1. Muitos interlocutores insistem num problema étnico que não existe noutras partes de um país de mais de quatrocentas etnias, logo, falso.  Da mesma forma que a tribo Ngoni existe na África do Sul, em ESwatini, em Moçambique, no Zimbabwe, na Zâmbia, no Malawi e na Tanzânia, não se pode restringir uma etnia africana a um país.  Não se pode dizer por conseguinte que a etnia Tutsi é do Ruanda ou do Burundi, ou que a etnia Massai pertence a um só país.  Isso é ignorar a história Africana.

    1. A questão étnica está portanto a ser repetida e instrumentalizada por interesses estrangeiros e por ambas as partes para justificar as suas ações.  Ambas, quais?  É perigoso precipitarmo-nos sobre a conclusão; vamos até lá por via logica. 

  2. Um problema de exploração desenfreada de recursos minerais e naturais da RDC que servem economias externas, as quais alimentam, financiam e beneficiam desta instabilidade.  Não é coincidência que o Ruanda e a União Europeia celebraram em Fevereiro de 2024 um convênio de cooperação e de partilha de tecnologias (leia-se equipamento de escavação), com o intento de garantir uma cadeia de valor dos minerais estratégicos, que não existem no Ruanda.  O convênio tem o objetivo de fazer do Ruanda um entreposto da cadeia de valores da extração mineira vizinha.  Dois meses após a assinatura deste memorando, ressurge em potência o movimento M23, que controla a zona de Rubaya no Kivu Norte.  O que existe em Rubaya?  Um aeroporto onde nenhuma autoridade da RDC tem autorização para aterrar.  Coltão, cobalto.

  3. Um problema histórico de coexistência entre a RDC e o Ruanda, e em menor medida com o Uganda.  Este problema desenvolveu-se a partir do genocídio do Ruanda em 1994, da queda do regime de Mobutu no Zaire, da invasão da RDC por forças do Uganda e do Ruanda, cujo culminar absurdo foi a batalha de Kisangani, onde duas forças estrangeiras se confrontaram pelo controle de território alheio.

  4. E toda  esta situação complexa coroada por uma falta prolongada de direção visionária nacional no Congo, oferecendo um teatro de vazio político e administrativo num país imenso.  Foi assim que se instalaram no Congo inúmeros grupos armados que facilitam e executam a exploração e exportação ilícita desenfreada das riquezas minerais e madeiras do país.


É nesse contexto que se deve compreender a instrumentalização da questão étnica como central no genocídio, e agora no conflito que levou à ocupação de Goma por forças não governamentais.  A questão é demográfica e econômica e portanto acaba sendo de gestão política.  Desde o assassinato de Patrice Lumumba em 1961, os dirigentes da RDC não foram bons gestores ou lideres, tendo-se associado mais ao problema da pilhagem nacional persistente do que na governação.  


O contexto é frágil e complexo, sobretudo depois dos acontecimentos de 1994 a 2000 na Região dos Grandes Lagos (com refugiados Ruandeses que fugiram através de rios e florestas até Congo-Brazzaville, até Pweto no Catanga e até a Zâmbia).  Para além disso, padrinhos externos como os EUA e a União Europeia vem agravar esta situação porque nesta situação de conflito fica fácil extrair recursos minerais raros de forma impune.  Turvando as águas para melhor pescar.  Para isso, eles se aproveitaram e foram financiando a instabilidade na RDC, através de países irmãos e vizinhos.   


Foi assim que a União Europeia veio assinando acordos de cooperação com a RDC e a Zâmbia, antes de chegar ao acordo que mais lhe interessava: o acordo com o Ruanda de Fevereiro de 2024.  Tentando dar a impressão de ser amiga e parceira de todos, mas na realidade fomentando a instabilidade na RDC mais perto da exploração de coltan de Rubaya.  Financiando países vizinhos para o efeito.


Aqui há gato e vítima de três eixos: Bruxelas/Washington, Kigali e Kinshasa.  Esse gato é o coltao e o cobalto, e a vítima, hoje é Goma.  


A falha de liderança faz com que certos países aceitem ser agentes do imperialismo e da desestabilização, não pondo os seus problemas existenciais de forma aberta e frontal nos fórums regionais existentes no continente.  Isso força todos os países interessados a abordar a problemática de forma alinhada, errada e emocional, portanto sem solução.  


Existe também uma questão de evolução demográfica daqui a cinquenta ou mais anos que deve ser prevista e equacionada de forma a evitar traumas econômicos mas que se nos apresentam como étnicos.  Insistir na etnicidade levará a região dos Grandes Lagos a arriscar-se a ter multidões de famílias em situação de exclusão e risco de apatridia.


Toda a questão é hoje ainda mais complicada por discursos diabolizantes das várias  partes envolvidas e através de canais potentes de informação e formação de opiniões.


Existem etnias?  Pois existem, mas se fôssemos a falar de etnias, seríamos ignorantes se falássemos apenas de Hutu e Tutsi, esquecendo-nos de outras: Nande, Hunde, Twa, etc.  Trata-se mais de classes sociais do que de etnias.  O prisma étnico condena a gestão da coisa pública ao fracasso e à perpetuação da crise.


Não é sequer uma questão de dois países: é uma questão regional: aceitando as fronteiras criadas pelo colonialismo, o que se passa a Leste da RDC é um problema que deve ser aceite e reformulado por todos os países vizinhos, sobretudo os que sofrem das consequências do conflito na zona dos Grandes Lagos incluindo a questão de refugiados que se recicla.   


Liderança neste caso significa: redefinir o problema, desinfectar o problema de todos os interesses estrangeiros à região, e levar tempo para resolve-la através de uma diplomacia paciente, exclusivamente africana, tendentes a inventar soluções corajosas e futuristas que saiam do molde colonial.  Quanto mais cedo se reconhecerem as realidades econômicas, demográficas e humanas, melhor para uma diplomacia de estado que resolva crises que correm o risco de se repetir.


Com efeito, quem não aprende da história, arrisca-se a repeti-la e ela não é necessariamente positiva.

  

D.    Cabo Delgado é Moçambique


Para começar, um pequeno trecho pouco conhecido da história de libertação de Moçambique: quando os moçambicanos começaram a se organizar na Tanzânia para libertar o pais do colonialismo português,  eles obtiveram facilmente o apoio da Tanzânia.  Entretanto no início, para a Tanzânia, a percepção do que constituía Moçambique se limitava a Cabo Delgado, por razões de proximidade geográfica e étnica.  Com o  tempo, esta percepção foi evoluindo.  Um desvio necessário.


Em relação à instabilidade de Cabo Delgado, podemos afirmar que historicamente nenhuma intervenção militar estrangeira conseguiu ser base de resolução de conflitos internos a um país. O que nos leva a interrogar de forma frontal e sincera: como é que os acordos regionais de segurança vigentes contribuem para o empoderamento de Moçambique? Ou seja: o que é que os atores de segurança estrangeiros devem fazer a fim de terem impacto positivo na segurança, e de maneira que a curto prazo as forças estrangeiras não sejam necessárias em Moçambique?  E o que faz o governo de Moçambique para se chegar a esta situação desejável?


A TotalEnergies divulgou no mês de Maio de 2023 um relatório[2]  que identifica os seguintes motores do conflito:

  • Desigualdades entre o Sul e o Norte do País,

  • Rivalidades étnicas,

  • Consequências da Guerra entre a Frelimo e a Renamo,

  • Ausência de serviços públicos,

  • Acesso a terra e aos recursos naturais,

  • Organizações mafiosas que circulam no território,

  • Influências regionais, e (em último lugar)

  • O Jihadismo internacional


Ato contínuo, o relatório recomenda ações a serem tomadas pela TotalEnergies, ações essas que representam uma faca de dois gumes. Elas acarretam não só riscos, mas também um sentido de negatividade contra o estado Moçambicano, o mesmo estado que fez largas concessões à TotalEnergies. Uma das acoes preconizadas é a criação de um fundo de 200 milhões de dólares americanos para projetos de responsabilidade social corporativa (CSR) em Cabo Delgado para os próximos dez anos, a serem implementados por uma agremiação local chamada Pamoja Tunaweza, transformando-a em fundação. Ora esta abordagem tem dois efeitos nefastos imediatos:

  • Ao canalizar através de uma ONG um investimento de $20 milhões por ano para projetos sociais numa província onde o governo tem muito poucos projetos de desenvolvimento, fica clara a intenção de ofuscar a importância do estado, que passará a ficar ainda mais irrelevante para  uma população já alienada pela guerra.

  • Enquanto o governo criou a Agencia de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN)[3] como resposta à flagrante falta de progresso na Província desde a independência, a estratégia da TotalEnergies de contribuir para o desenvolvimento colocando recursos nas mãos de Pamoja Tunaweza, é perigosa porque desta forma, uma ONG passaria a colocar em toda a Província mais recursos do que o próprio governo, contribuindo assim para tornar a ADIN um ator fraco, desacreditado e irrelevante.  Por outro lado, esta recusa de trabalhar com o governo é uma declaração do ponto de vista desta empresa.


Infelizmente, os projetos da ADIN foram concebidos para demonstrar ações de desenvolvimento sob pressão, não um plano concebido por convicção que subsequentemente teria então sido frustrado por uma guerra emergente.  Estrategia de reação, não estratégia de estado.


O relatório propõe também que a TotalEnergies trabalhe com as forças militares do Ruanda e cesse a sua cooperação com as forças armadas de Moçambique, a pretexto de uma questão de capacidades e de abusos de direitos humanos. Estes são os primórdios da proclamação de um enclave com orçamento e aparato de segurança distintos.  


Assim, a soberania é interpelada de forma rude: depender mais das forças armadas Ruandesas, e afastar as forças armadas Moçambicanas do seu próprio território parece-nos uma tentativa de criar um enclave autónomo em Moçambique pela força do dinheiro. O papel de certas forças irmãs estrangeiras estacionadas em Cabo Delgado e financiadas pela União Europeia é muito preocupante porque facilita a separação de uma parcela do território. As condições estão reunidas: quem pegar no mapa do Oceano Índico, logo se apercebe de territórios franceses muito próximos de Cabo Delgado e que podem servir de retaguarda logística. Quem precisa de mais indicadores!


O que nos leva à necessidade urgente de agora se negociar e forçar a adopção de  uma estratégia a médio prazo de saída de todas as forças estrangeiras presentes em Cabo Delgado.  Apostando, na formação e organização, na disciplina e éticas de guerra[4] e na prontidão combativa das forças armadas nacionais. Assim é que se pode dizer que as forças estrangeiras contribuíram para o fortalecimento do país. Caso contrário, continuarão estacionadas e a incapacidade do exército nacional continuará a ser justificação para uma permanência sine die. Numa Província muito rica em recursos, não só de gás, mas também rubis, madeira, marfim, ouro, pedras preciosas, grafite e outros, o risco de as forças militares estrangeiras permanecerem e participarem de maneira camuflada na exploração dos recursos é grande. Em cujo caso, o fim da guerra vai-se tornando um objetivo secundário e até contrário aos interesses que estão ganhando raízes.  


A maior das ameaças internas criadas por toda esta situação dramática de Cabo Delgado é a exclusão do povo, provocando e provocada pelas deslocações forçadas[5] e massivas de populações.  A saber:

  • Populações dramaticamente deslocadas pelos interesses da exploração do gás: indústria do gás, com 18.000 hectares de terras oferecidas à Cidade do Gás.  Falsas promessas de empregos e compensações.

  • Populações deslocadas à força pela indústria extrativa de pedras preciosas e da madeira e grandes extensões de terra privatizadas, criminalizando a pequena exploração mineral artesanal.  

  • Populações deslocadas pela guerra.


Todas as partes interessadas no gás de Cabo Delgado continuam a passar em silêncio

  • a questão de melhor participação nacional[5], questões de conflito de interesses[6] e

  • o não aproveitamento destes empreendimentos para desenvolver um empresariado nacional experimentado.


Que tem este historial do gás a ver com a relação entre o povo e o estado? Tudo. É a essência mesmo do Contrato Social.

  1. Em primeiro lugar, que o estado se prepare para um assalto negocial vigoroso da parte destas empresas que foram obrigadas a invocar a Force Majeure, e que utilizarão esta suspensão para obter mais concessões e para diferir para um futuro ainda mais longínquo  os desígnios de Moçambique de beneficiar de melhores condições contratuais sobre os seus recursos naturais.

  2. Em segundo lugar, Cabo Delgado pode ser outro Biafra. O estado deve estudar o comportamento histórico dos seus parceiros, em particular a França  e o Ruanda, e exercer vigilância, para a preservação da soberania territorial. Eu trabalhei na Nigéria e na RDC, incluindo uma missão prolongada na emergência de Goma dos anos 2007-2008, e fiquei com o claro sentido de que os conflitos do Biafra e do Leste da RDC foram branqueados, contados de forma tendenciosa e atribuídos sobretudo a forças internas, quando as forças determinantes foram e são estrangeiras.


Urge, mais uma vez, que o estado Moçambicano obrigue todas as forças estrangeiras a programar e declarar a sua estratégia de saída. E que o estado Moçambicano optimise a presença militar estrangeira para o reforço da sua capacidade, afim de reafirmar/repor a soberania territorial de forma urgente.


Neste contexto, o sentido de urgência da reposição da soberania militar é uma característica de liderança.


Recursos: gostaríamos de chamar a atenção dos nossos dirigentes, do nosso estado sobre as relações internacionais desiguais que se fazem sentir no momento em que um país Africano quer reafirmar a sua soberania sobre os seus recursos naturais. É aí que a armadilha é despoletada, demasiado tarde e de forma conflituosa irreversível. Então entra em jogo um artigo que normalmente não temos o cuidado de ler, mas que faz parte de todos os contratos de exploração transnacionais.

Em caso de disputa, o contencioso será resolvido por recurso a Centro Internacional de Resolução de Conflitos sobre Investimentos, o International Centre for Settlement of Investment Disputes. 

Tudo parece lindo até se chegar a esta instância, que, em primeiro lugar, se exprime num Inglês refinado para intimidar e atrapalhar, e em segundo lugar, segue uma lógica legalista determinada por interesses ocidentais. Nossos recursos regidos por leis estrangeiras, verdadeiras algemas.


Ademais, o Centro de Integridade Pública (CIP) emitiu em Novembro de 2022 um relatório intitulado Avaliação dos Riscos de Corrupção na Cadeia de Valor de Petróleo e Gás em Moçambique, onde sublinha precisamente que a indústria do gás constitui uma vasta área de riscos de corrupção. E para que esta corrupção seja possível sem entraves, as instituições constituídas por lei para velar pelos interesses nacionais são elas próprias o berço do conflito de interesses.  Senão vejamos:

  • O ministério de tutela é a entidade que elabora e influencia a lei;

  • O mesmo Ministério é signatário de contratos que ele deve monitorar e sobre os quais deve exigir cumprimento por parte de empresas estrangeiras, ou seja, o Ministério é árbitro e jogador.


Fica claro que é urgente diferenciar entre as atribuições supervisoras do estado (Assembleia da República) e as atribuições executivas (de execução) do governo (Conselho de Ministros). Esta relação estado-governo (governo-partido), a não ser estudiosamente definida, deixa aberto um campo imenso de corrupção que debilita a nação e faz do governo uma entidade petulante que não vê necessidade de prestar contas a ninguém. Nação, estado, governo, Partido.  O Contrato Social reafirmado clarificaria toda esta relação para satisfação do soberano: a defesa desta soberania.


Devemos mais uma vez pedir desculpas ao leitor por nos termos fixado nestes dois últimos parágrafos na questão da corrupção, que também  é uma questão de falha de liderança.  Porque a mensagem central desta situação de Cabo Delgado é a questão de soberania.  A corrupção sendo mais um instrumento de debilitação das instituições que devem velar pela tal soberania.


O mais central para o fortalecimento da soberania é ter forças armadas nacionais fortemente acarinhadas pelo governo, que não passem fome, que tenham uma logística sólida e uma disciplina e ética de guerra notáveis.   Ao contrário do que se verifica: forças Ruandesas melhor financiadas, melhor equipadas, que se dão até a missão de distribuir alimentação à população atribulada pelas deslocações de guerra, passando esta população a preferir a presença de forças estrangeiras.


Falha de liderança.


Este é um apelo aos nossos dirigentes, nacionais, regionais e continentais: Ofereçam-nos melhor liderança.  Esse foi o clamor da juventude no Mali, no Burkina Faso, no Niger, no Quenia, em Moçambique e vai-se ouvir cada vez mais, porque a demografia do Continente continua a expandir e a ser cada vez mais jovem, mais vigorosa e melhor informada.

Canhandula

Fevereiro de 2025


[1] Insistimos na noção de “gestão nacional” porque o conflito em Cabo Delgado se internacionalizou por causa da pressão do capital internacional, com impactos cujos contornos ainda não percebemos na sua totalidade, como nação.



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