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O SACO DE CIMENTO A 300 METICAIS

A.   Anotação introdutória

O uso do artigo “o” n(o) saco de cimento em título serve para singularizar a expressão, porque ela (a expressão) tem a particularidade de concatenar todas as taxas parasitas que se escondem em muitos produtos à venda no nosso mercado.  Por detrás desses produtos todos existe uma política económica, e no nosso caso, uma perversão entre a política económica e uma economia política de que somos financiadores e protagonistas inconscientes, e, por via de consequência, vítimas.

 

B.    Considerações preliminares

1)      Ninguém ignora em Moçambique o Decreto nacional do Engenheiro Venâncio Mondlane, que não nos atrevemos ainda a chamar Decreto Presidencial, mas que muitos Moçambicanos aceitam como tal – e é melhor constatar este facto se queremos a paz política: tanto é nacional que mexeu com todo o país. 

  • O que muitos ignoramos é a economia política por detrás deste documento complexo.

 

2)      Ninguém ignora neste país a campanha do Engenheiro Venâncio Mondlane para a abolição das portagens.

  • O que muitos ignoramos é o que justifica em primeiro lugar a existência de portagens em meio a estradas herdadas do colonialismo e que hoje destroem as nossas viaturas.  Se as receitas das portagens são usadas para melhorar as infraestruturas rodoviárias, o argumento é falso, pelo que vivenciamos.  Para nós, muito localmente, considerando que Tete é um corredor regional entre a África do Sul, o Zimbabwe, a Zâmbia, O Malawi, e a Tanzânia, sentimos muita pena de sermos uma via de trânsito regional que destrói viaturas, colunas vertebrais e úteros maternos.  

 

3)      Ninguém ignora a campanha do Engenheiro Venâncio Mondlane para a abolição do IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) que incide sobre os produtos alimentares básicos. 

  • O que muitos ignoramos são as alternativas de captação de receitas de que o estado depende para a proteção pública e para a provisão de serviços, pese embora a qualidade desses serviços.  Existe alguma estratégia alternativa?

 

4)      Ninguém pode ignorar a campanha do Engenheiro Venâncio Mondlane pela redução do custo do saco de cimento para 300 Meticais.  O cálculo foi mesmo explicado em relação ao custo do cimento transportado de Maputo e entregue em Johannesburg, na Africa do Sul.  É uma lógica implacável.   

  • O que muitos ignoramos é a economia política que está por detrás. 


É sobre este último caso que gostaríamos de tecer algumas considerações para tentar contribuir para o enquadramento desta luta económica, representada pelo Decreto “dito” número 1 do Engenheiro,

  1. Uma luta pela qual a juventude vai perdendo o medo de morrer.

  2. Uma luta contra a qual o governo não receia utilizar os instrumentos repressivos legais do estado para matar: instituições do estado estão sendo utilizadas de forma que as vão alienando perigosamente do povo, porque marcam a dissociação do estado do contrato social que justifica a sua existência.

  3. Uma luta que certos elementos duros do partido no poder insistem em não analisar ou reconhecer, até que seja tarde demais.  Para eles, as manifestações aterrorizam os seus interesses enraizados.  Alguém até comparou as manifestações ao terrorismo e prometeu derramamento de sangue: este estado de coisas exprime claramente um governo que precisa de oprimir para continuar a defender um grupo restrito aliado ao capital internacional.

  4. Uma luta na qual Venâncio Mondlane já ganhou o seu lugar histórico.  A luta já não lhe pertence, vivo ou morto. 


É desta verdade e honestidade intelectual que hoje muitos dos nossos ilustres e grandes professores tem receio de demonstrar.

 

C.   O Cimento, símbolo de uma mensagem muito mais ampla

Alguns de nós já queimamos a nossa juventude no apoio e na solidariedade de Moçambique para com a luta dos povos Sul-Africano e Zimbabueano, quando estes ainda lutavam contra sistemas coloniais enraizados, pela sua libertação.  Acabávamos nós de ganhar a independência.  Apesar de todas as críticas que se podem fazer ao Presidente Samora Machel, ele foi-nos oferecendo a cada passo duas coisas vitais para a nossa percepção de soberania: uma visão e uma direcção.  Erradas ou não, havia uma visão e ele dirigia-nos para lá.  Hoje não se nos oferece visão.  Vamos sobrevivendo do dia-a-dia, dos buracos na estrada, do carvão e cheiro de enxofre nos pulmões, casa a escurecer e a rachar e a água suja em Moatize.  A saúde e a educação estão em estado lamentável, e os funcionários mal são pagos e são pagos mal. Um dia-a-dia penoso.


Para onde se dirige o jovem daqui a dois anos?  Alguém lho diga porque ele não sabe.  Ele fica nervoso porque daqui a mais três anos vai dever constituir uma família, sem nada para oferecer a essa tal família jovem.  Casal sem casa.


Samora também nos ensinou que país não é necessariamente nação, e que para ser nação devíamos trabalhar no sentido de forjar uma unidade nacional.  Sem descentralização do poder e das decisões sociais e económicas, nas condições particulares de Moçambique, a nação não se constrói.  Quem está em Maputo mal sente o que se passa em Pemba.  Mal compreende que aos poucos certas forças em Cabo Delgado poderão um dia ser aliciadas a tentar um novo Biafra.  A logística necessária para isso está presente, e o reforço está a meia hora de voo ao largo do Oceano Indico, em possessões francesas.


Isso tudo nos induz, nesta altura da vida, a continuarmos engajados intelectual e emocionalmente na oferta de ideias e reflexões corajosamente provocantes para sugerir a formulação de novas estratégias que levem Moçambique a uma posição próspera excepcional, à altura e medida das suas riquezas naturais: em primeiro lugar, o homem moçambicano, jovem na sua maioria, como a riqueza mais positiva e agente activo.  E em seguida, toda a riqueza natural deste país: uma costa de mais de 2.700Km, uma zona marítima de mais de 4.500Km2, grandes rios, riquezas imensas do mar, do solo e subsolo.  A flora e a fauna!


Antes de entrarmos no vivo do cimento e da política económica (ou da economia política) subjacente, somos obrigados a insistir: a noção de que a demografia é um problema a ser resolvido através de programas de controle da população, uma ideologia refletida até na Estratégia Nacional de Desenvolvimento 2025-2044 (ENDE)[1], é um discurso estrangeiro muito negativo.  Quem nos inculcou a ideia da demografia como uma ameaça tem futuras intenções de recolonização e povoamento.  Senão veja-se: a guerra em Cabo Delgado acontece num território de 82.625Km2 (densidade populacional de 33/Km2).  Para quem não notou, muito diferente da densidade populacional do aliado Ruanda (660/Km2) com um a superfície de 26.400Km2 (aproximadamente 32% da superfície de Cabo Delgado só). 


Não conseguimos ver que existem em Cabo Delgado interesses em manter populações eternamente deslocadas, ao ponto de a deslocação forçada da população passar a constituir uma característica demográfica permanente e confirmada na ENDE 2025-2044?[2]  Ou nos falta coragem e imaginação para pôr fim a esta ameaça, ou a ameaça passou a constituir um negócio lucrativo para as elites nacionais também, que prevê populações deslocadas ate 2044!!!


Tornamos a insistir: a demografia não é uma ameaça hoje nem o será, projetada daqui a cinquenta anos.  Devemos por isso adoptar uma visão mais positiva sobre seres humanos, irmãos e compatriotas, senão vamos priorizar a propriedade privada e a proteção das reservas naturais contra a “invasão das populações”.  Para o capital internacional e seus servidores nacionais, o ser humano é menos prioritário do que a propriedade privada, a reserva de caça e o turismo euro-americano que traz dinheiro que nem sempre vai para os cofres do estado.  A Tanzânia e o Quénia são exemplos de governos que decidiram sacrificar as suas populações para favorecer o turismo e a caça desportiva de troféus para a América e Europa e países do Golfo.  O povo que se afaste!


Propomos pelo contrário o regresso aos valores humanos primários: a demografia é uma energia que deve ser acarinhada, prevista para os próximos cem anos, na maneira como se gere o território físico.  A população vai continuar a crescer e essa realidade inexorável deve ser tida em conta:

  • De forma positiva, e projetada para um futuro controlado por nós.

  • Na expansão dos serviços necessários daqui a cem anos: água potável, saneamento, educação, saúde, planeamento espacial,

  • De forma educativa para que este crescimento, em vez de ser controlado através da agressão física e emocional da mulher e da nossa filha na escola, seja o resultado de uma educação e da escolha livre.  Gerir a demografia, não a controlar.

 

D.   E o Cimento nisso tudo?

 

Dito isto, voltemos ao nosso bife: o cimento a 300 Meticais.  Possível.  Só precisa de vontade política porque a justificação económica está demonstrada – o saco de cimento exportado de Maputo entregue na África do Sul custa menos de 300 Meticais: o exportador, o transportador, o armazenista e o retalhista, cada um encontra o seu lucro nesta cadeia.  Ou não estariam neste negócio.  Sendo que, neste caso, o Moçambicano está a subsidiar:

  • Todos os três agentes intermediários, para alem do produtor ele próprio (transportador, armazenista, retalhista),

  • A construção e a prosperidade da África do Sul; as infraestruturas que o próprio Moçambique não tem, nem mesmo no grande Maputo.


Através da sua miséria, o Moçambicano está, portanto, a financiar a prosperidade da África do Sul, continuação de um esquema colonial onde o Moçambicano enterrado nas profundidades das minas de ouro e carvão, sacrificou a sua saúde, dignidade e família, para construir essa África do Sul.  Uma África do Sul que não seria próspera se não fossem as condições míseras do trabalho migratório recrutado no Malawi, no Zimbabwe, em Moçambique.


E ficamos invejando uma África do Sul cheia de infraestruturas, que não só compra barato de Moçambique, mas até transformou Moçambique num grande supermercado para os seus produtos agrícolas.  É só visitar os mais de trinta supermercados Shoprite pelo país fora.  Admira a alguém que a estrada para a África do Sul esteja bem mantida, enquanto a estrada Nacional Número 1 já desapareceu?  Não há investimento nas estradas nacionais porque precisamente iriam concorrer com a África do Sul na movimentação de produtos alimentares dentro do país.


A questão do cimento é sintomática de um capitalismo de renda, que inclui também outros aspectos de apropriação (senão roubo) tais como o investimento predial urbano e a questão de terrenos.  Muitos moçambicanos concorrem nas eleições para posições políticas, para aceder ao poder que lhes proporciona o acesso ao capital e ao capitalismo de renda.  O controle político de instrumentos de geração de renda exige a dominação exclusiva e o monopólio do poder sobre a máquina administrativa.   


Ser intermediário entre um estado que decide da distribuição e atribuição.  Aliar-se e associar-se às cadeias globais de logística  afim de facilitar e exigir comissões no seu encontro com os decisores. 


Foi-se assim instalando e enraizando uma relação exploradora que se assemelha à colonial na agressividade com que defende a continuação de uma situação de miséria para “o resto”.  O rico só consegue ser rico se conseguir manter o pobre na pobreza, na ignorância e na intimidação e medo. Essa é uma lição do colonialismo europeu, que ainda se reflete hoje no relacionamento atual entre a Europa e a África.


Esse é também o sentido do Cimento de Moçambique


Abandonamos a visão que nos animou nos primeiros anos da nossa independência e que deram sentido à noção de um povo unido, e de um partido que defendia a união nacional e a soberania.  O partido passou a ser passagem obrigatória, padrinho incontornável para gozar dos recursos do estado.


Abandonamos a vigilância que nos fazia compreender que a classe política está exposta ao risco de arrancar os frutos do trabalho e do suor duro de uma população pobre.  Abandonamos as análises colectivas, deixamos de lado a autocritica e o exame de consciência colectivo.  Passamos a cantar hossanas ao chefe dispensador de favores.  Surgiu o empreendedor que não tem nenhuma experiência do negócio que registou, confiando no acesso privilegiado às elites políticas para se apropriar dos frutos do labor dos outros.


Quem fala, pois, do cimento, pode falar de muitos produtos de necessidade, através dos quais foram-se impondo intermediários políticos obscuros.  O cimento está ligado a uma vida dignificada, o acesso a uma habitação condigna do jovem.  A falta do investimento massivo na habitação faz com que a maioria das construções sejam de caniço e palha, iniciativa individual em espaços não planificados e não reclamados, surgindo bairros sem demarcação e em zonas normalmente sujeitas a inundações e ao entulhamento sanitário.  Criamos assim as condições para os surtos de cólera que se repetem cada ano!


Quem não sabe que sempre que chover dois dias na baixa de Maputo haverá inundações?  Só quem não tem cimento.


A nossa gestão da coisa pública reforça a ideia teimosa de que não temos capacidade para criar cidades novas, ordenadas, espaçadas, com previsão de crescimento demográfico, de mais viaturas, de necessidade de mais escolas com espaços recreativos.  Se hoje temos 12,000 estudantes, esperemos ter daqui a 50 anos um crescimento anual de ao menos 5,000 (daqui a 50 anos, pelo menos 300,000 estudantes!).  Realidade a assumir na planificação espacial.


Não é o cimento que falta!


Quem fala e se bate pelos direitos do jovem trabalhador sem casa? Quem fala pelas preocupações e dificuldades da mãe?   As organizações ditas de massas não consultam mais o povo, não escutam, não se batem pelo povo nem defendem causa alguma porque estão profundamente partidarizadas para cantar os louvores, seja qual for a situação.  Por isso não compreendem e se empenham por distorcer a batalha pelo acesso das massas populares ao cimento.  E por distorcer tantas outras batalhas de melhoramento da qualidade de vida e da dignidade do moçambicano. Resistindo a abolição da portagem cujo rendimento não melhora estrada nenhuma.


O partido passou a ser instrumento de exclusão e os partidos que não estão no poder estão à espera da sua vez para praticar a mesma exclusão e o mesmo monopólio.  A vítima de hoje anseia ser o vitimizador de amanhã.  Esta prática política rouba o espaço ao estado, que por esta via de padrinhos, não pode cumprir o contrato social com o soberano.  O governo passa a ser uma forma de controlar o estado e fazer com que este se imponha e roube a função de soberano.


O cimento simboliza. Toda a distorção e interpretação tendenciosa isolada da gestão do cimento representa uma desonestidade intelectual, política, social, económica e patriótica.  Insulta a memoria dos Moçambicanos enviados para as minas da África do Sul através da Witwatersrand Native  Labour Association  (WENELA).  Que a história seja ensinada, para que todos compreendamos a profundez da nação moçambicana.  E da luta pela sua emancipação do neocolonialismo.


Que o foco seja a mensagem e não o mensageiro.  O cimento, e não o Venâncio!

 

Canhandula

Tete, Março de 2025


[1] https://www.mef.gov.mz/index.php/publicacoes/estrategias/2184-estrategia-nacional-de-desenvolvimento-2025-2024  Principais indicadores e metas (pág. 79): Taxa de crescimento da população: Reduzir a taxa de crescimento da população de 2.5% para 1.8%.

[2] ENDE 2025-2044, Pág. 81, Parágrafo 133



 
 
 

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