top of page

A BIBLIA PARA MIM – 3

Writer's picture: canhandulacanhandula

Como dizia noutro artigo sobre o significado pessoal do livro sagrado, a bíblia é uma das minhas leituras-companheiras de percurso.  Depois da minha experiência vivida, depois de ter notado como a bíblia tem sido interpretada e utilizada, fui obrigado, por razões intelectuais, éticas, políticas, sociais e de preservação da minha fé, a me demarcar de três tendências que usam a bíblia como escudo legitimador:


(a)   Do genocídio do povo Palestino.  Israel hoje vale-se da bíblia e das figuras bíblicas que nós respeitamos (Moisés e sua turma) para se justificar.  Israel, é claro, vem mencionado mais de 2.500 vezes no livro sagrado.  O território bíblico é esse, mas o povo não é esse.  O comportamento de Israel hoje faz com que eu leia a bíblia com outra compreensão e com outra busca.  Um Deus que para mim se revelou aqui na Angónia, em Tete, em Moçambique, em África.  O meu Deus não é esse que permite o genocídio actual de mais de 40.000 Palestinos, a destruição de escolas e hospitais, e a tentativa de desterro de todo um povo desde 1948.

 

(b)   Dos televangelistas que comercializam a pessoa e a divindade de Jesus.  Vendem histórias de cura e enriquecimento súbito. Comercializam Jesus e se aproveitam do desespero do pobre vendedor da rua por um enriquecimento rápido, enquanto na realidade são eles que se enriquecem e compram aviões.  E o pobre é pressionado a pagar o parqueamento, o combustível, o piloto e trabalhadores de bordo, os serviços de voo e sobrevoo, e a manutenção.  Todos estes serviços são muito caros até para algumas companhias nacionais financiadas pelo estado, que mesmo assim estão falindo!

 

  • Ao fim do ano, o pobre não sai da pobreza.  Volvidos quatro anos, este vendedor de rua não consegue meter o filho no colégio, que entretanto cresceu.  O que cresceu é a sua fé, por bombardeamento de um proselitismo manipulador.  Tudo o resto ou desceu ou estacionou e continua a viver num quarto insalubre nos subúrbios da cidade.   O profeta entretanto tornou-se milionário em menos dos quatro anos. 

  • Quase todos os seus milagres são uma encenação preparada que não resiste à investigação objectiva não emocional.  Assédio moral e emocional! Esse fazedor de curas que não se atreve a ir visitar o hospital está a pregar falsidades.

  • Levanta suspeitas no meu espírito  a forma como se rescindem a poucos livros da bíblia, como se quisessem educar os seus seguidores a evitar muitos outros livros por razões que só eles conhecem.  É uma ideologia, uma orientação manipuladora. 

  • O que eu CONTUDO retiro como lição positiva destes televangelistas é a espontaneidade da oração, que na minha igreja não se ensina nem se encoraja e é pena.

 

É claro que esse Deus e essa versão de Jesus não é minha.

 

(c)   Do colonialismo: encontro-me na mesma posição do Arcebispo Desmond Tutu da África do Sul.  O cristianismo foi trazido pelo colono português para Moçambique como parte integrante da sua colonização (ação colonizadora chamada civilizadora). 

  • Em virtude da sua introdução, estudei numa missão católica, num seminário católico Jesuíta, meu pai foi catequista e hoje eu sou catequista por voluntariedade.  Mas a Igreja católica traz uma bagagem colonial enorme.  De tal forma que ela encontra ainda muita resistência nas nossas terras, sobretudo que culturalmente existe um hiato difícil de conciliar entre uma igreja de cultura judeu-latina, e as nossas culturas Bantu.  Contudo, a cultura é o menor dos nossos dilemas com a fé cristã.


Dizia Desmond Tutu: “quando o colono chegou, era pobre e só possuía uma arma e uma bíblia.  Nós tínhamos uma terra linda, virgem e rica.  Assim, o colono nos reuniu e sugeriu que fechássemos os olhos para melhor rezar.  E fechamos.  Ao fim da oração, magicamente, o colono nos tinha passado a bíblia e se tinha apoderado da terra.  Mas guardou a arma”.


O colonialismo veio com uma mistura de valores alheios que inferiorizavam o Africano mas também trouxe aspetos positivos, tais como os serviços de educação e saúde, claramente imbuídos também da cultura colonial.  No caso de Portugal e doutros países europeus, o colonialismo se implantou para servir uma economia europeia fraquíssima que só sobreviveu à base da escravatura, da mão de obra africana dispersa pela América Latina, Caraíbas, Estados Unidos, etc.  Foi a mão de obra escrava africana que criou a riqueza desses países todos.


A igreja católica esteve na base deste empreendimento colonial, tendo presidido, nos primórdios da colonização territorial, as decisões colonizadoras, como se pode constatar no Tratado de Tordesilhas[1], na Bula Papal Inter Coetera[2] do Papa Alexandre VI em 1493, que dividiu as expedições coloniais  entre os reinos de Portugal e Espanha.  Assim também surgiu a Concordata entre a Santa Sé[3] e o governo Português em relação à conjugação da empresa colonial e o trabalho missionário nas suas colónias em África.  Portanto, a igreja católica, não só participou na obra colonial, mas até esteve na origem do ordenamento colonial pelo papel que os papas jogaram na arbitragem e determinação de zonas de exploração colonial entre a Espanha e Portugal, potências marítimas mundiais do seculo 14 e 15 – Cristóvão Colombo[4], Vasco da Gama[5], são os pilares mais facilmente reconhecíveis hoje do saber e da ciência de navegação marítima dessa época e empresa coloniais.


É preciso compreender a colonialidade da igreja Católica para compreender o sentido da disciplina, da uniformidade e da submissão, pilares do dogma da igreja.  Esta conformidade está na base da eliminação de diversas versões da bíblia em favor de uma verdadeira.  E de todo o esforço por proibir a circulação em meio cristão de certos livros tidos como blasfemos[6].


Porquê conhecer toda esta história de uma época medieval revolvida?  Esqueçamos o passado.  Não é bem assim.  Para defendera nossa fé, temos o dever de conhecer e saber interpretar o passado histórico, porque é de lá que os anticristos começam a sua narrativa. 

Entretanto, vou mais longe para repor uma questão que sempre me inquietou: será que a verdade é uma só? Hoje, além da bíblia católica existe a bíblia Protestante, a Judaica, a Ortodoxa, O al Quran e a bíblia etíope (ortodoxa), alias mais antiga e mais completa com 88 livros entre o Novo e o Antigo Testamentos.  Só para falar dos de origem cristã.  O respeito pela fé de outros povos é a base do respeito pela nossa.


Como muitos, eu certamente não sou discípulo do relativismo religioso, que levaria por via de consequência ao relativismo moral.  Imbuído destes conhecimentos, a minha leitura da bíblia passou a filtrar muitas histórias, e

  • deixou de ser inocente. 

  • deixou de ser fundamentalista.

  • deixou de ser exclusivista.

  • Afasta-se do fundamentalismo católico.


Por isso uma leitura integrada e sã da bíblia passa também por uma compreensão dos princípios da Doutrina Social da Igreja, grandes ensinamentos que dão vida aos evangelhos, interpretação humana e humanizante da religião.  A Doutrina Social da Igreja resgata a imagem colonial da Igreja[7] ao devolver a agência humana do cristão[8], um trabalho no qual está empenhado o Papa Francisco.


O resto, como se soi dizer, é história que não nos pertence, mas não ignoramos. Cabe a nós de fazer com que o cristianismo sirva para a elevação do homem africano.


Mensagem central


A fé não é inocente e não é incompatível com o conhecimento.  A igreja é uma instituição mais do que religiosa.  Ela é profundamente social na medida em que continua a representar as esperanças de muitos povos decepcionados pela ausência de um contrato social honroso com o poder político.  Ela é a consciência social, para cuja função ela deve permanecer distante das tendências políticas, mas com coragem de confrontar o poder político quando este quebra o contrato social com o povo.  Um povo que em primeiro lugar é de Deus.

 

Canhandula

Tete, 20 de Setembro de 2024

 

 



3 views0 comments

Recent Posts

See All

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page