A terra, Herança sagrada
Eu sou um leitor ativo da bíblia
Por ser crente,
Por ter sido leitura natural e de ofício nos meus sete anos de seminário católico, e
Por ser catequista na minha Paróquia.
Hoje, através deste artigo, quero fazer uma ligação direta entre o Livro do Levítico e a gestão da terra por parte dos que a herdaram, em particular os dirigentes, que não se devem esquecer nunca que são apenas mandatários do herdeiro soberano: o povo. Para atingir o meu objetivo de reforçar a mensagem de necessidade de gestão justa e correta da política de terras, transcrevo aqui a parte relevante do livro dos Levíticos.
LEVITICO, Capitulo 25
O Senhor disse a Moisés no monte Sinai: “Dize aos israelitas o seguinte:
quando tiverdes entrado na terra que vos hei de dar, a terra repousará: este será um sábado em honra do Senhor.
Durante seis anos semearás a tua terra, durante seis anos podarás a tua vinha e recolherás os seus frutos.
Mas o sétimo ano será um sábado, um repouso para a terra, um sábado em honra do Senhor: não semearás o teu campo, nem podarás a tua vinha;
não colherás o que nascer dos grãos caídos de tua ceifa, nem as uvas de tua vinha não podada, porque é um ano de repouso para a terra.
Mas o que a terra der espontaneamente durante o seu sábado, vos servirá de alimento, a ti, ao teu servo e à tua serva, ao teu operário ou ao estrangeiro que mora contigo;
tudo o que nascer servirá de alimento também ao teu rebanho e aos animais que estão em tua terra.
Contarás sete anos sabáticos, sete vezes sete anos, cuja duração fará um período de quarenta e nove anos.
Tocarás então a trombeta no décimo dia do sétimo mês: tocareis a trombeta no dia das Expiações em toda a vossa terra.
Santificareis o quinquagésimo ano e publicareis a liberdade na terra para todos os seus habitantes. Será o vosso jubileu. Voltareis cada um para as suas terras e para a sua família.
O quinquagésimo ano será para vós um jubileu: não semeareis, não ceifareis o que a terra produzir espontaneamente, e não vindimareis a vinha não podada,
pois é o jubileu que vos será sagrado. Comereis o produto de vossos campos.
Nesse ano jubilar, voltareis cada um à sua possessão.
Se venderdes ou comprardes alguma coisa de vosso próximo, ninguém dentre vós cause dano ao seu irmão.
Comprarás ao teu próximo segundo o número de anos decorridos desde o jubileu, e ele te venderá segundo o número de anos de colheita.
Aumentarás o preço em razão dos anos que restarem, e o abaixarás à medida que os anos diminuírem, porque é o número de colheitas que ele te vende.
Ninguém prejudique o seu próximo. Teme o teu Deus. Eu sou o Senhor, vosso Deus.
Obedecereis às minhas leis; guardareis os meus preceitos e os cumprireis, a fim de habitardes em segurança na terra.
A terra vos dará os seus frutos, comereis até vos saciardes e vivereis em segurança.
Se disserdes: que comeremos nós no sétimo ano, se não semearmos, nem recolhermos os nossos frutos?
Eu vos darei a minha bênção no sexto ano, e a terra produzirá uma colheita para três anos.
Semeareis no oitavo ano, e comereis da antiga colheita até o ano novo: comereis da antiga colheita até que venha a nova.”
“A terra não se venderá para sempre, porque a terra é minha, e vós estais em minha casa como estrangeiros ou hóspedes.
Portanto, em todo o território de vossa propriedade, concedereis o direito de resgatar a terra.
Se teu irmão se tornar pobre e vender uma parte de seu bem, seu parente mais próximo que tiver o direito de resgate se apresentará e resgatará o que o seu irmão vendeu.
Se um homem não tiver ninguém que tenha o direito de resgate, mas procurar ele mesmo os meios de fazer o seu resgate,
contará os anos desde que fez a venda, restituirá o excedente ao comprador, e se reintegrará na sua propriedade.
Se não encontrar, porém, meios de indenizar, a terra vendida ficará nas mãos do comprador até o ano jubilar; sairá do poder deste no ano do jubileu, e voltará à posse do seu antigo dono.
Se um homem vender uma casa de habitação situada dentro de uma cidade murada, terá o direito de resgatá-la até o fim do ano que se segue à venda: seu direito de resgate será de um ano completo.
Se a casa situada na cidade murada não for resgatada antes do fim do ano completo, ela pertencerá sempre ao comprador e aos seus descendentes: não sairá de suas mãos no jubileu.
Entretanto, as casas das povoações que não têm muros serão consideradas como fazendo parte do fundo de terras; poderão ser resgatadas e serão livres no ano do jubileu.
Quanto às cidades dos levitas e às casas que possuem, terão eles um direito de resgate perpétuo.
Quem comprar dos levitas uma casa, sairá no jubileu da casa vendida e da cidade em que a possua, porque as casas das cidades dos levitas são sua propriedade no meio dos israelitas.
Os campos dos arrabaldes das cidades dos levitas não serão vendidos, porque são sua propriedade perpétua.”
Fim de Citação
Logo logo, devo interpor duas ressalvas na minha fé, porque nos nossos dias a bíblia está sendo interpretada:
Por charlatães que não tem nenhuma preparação teológica. Eles transformaram a bíblia numa fonte literária de interpretação inventiva para enriquecimento através do impressionismo, da amedrontação e da psicologia da pressão de grupo, porque como Africanos, por natureza acreditamos no místico. Estes ignorantes-Chico-espertos, vão acabar pregando a sua palavra, fazendo-nos crer que essa é a palavra de Deus que se revelou a eles nalgum sonho.
Pelo estado atual de Israel que usa a bíblia e se apega às figuras emblemáticas de Moisés e Abraão para branquear e justificar o genocídio que está sendo praticado contra o povo Palestino desde Outubro de 2023. Até ao momento, mais de 36.000 Palestinos foram massacrados por Israel, com o apoio dos EUA e da Europa Ocidental. Para além de uma pilhagem violenta de terras que tem vindo a praticar desde a criação do estado de Israel em 1948. Mais uma vez, esse Israel, esse Sião vai contra a minha fé e reforça a minha convicção de que a bíblia deve ser lida de forma inteligente e contextual. Porque com certeza esse Deus de Israel que assiste ao massacre de dezenas de milhares de pessoas inocentes a essa escala, não é o Deus pai em que eu deposito a minha fé, não é o Deus misericordioso em que eu deposito a minha esperança. O que me consola é que o Israel de hoje não representa o povo Judeu, apesar de assim o reclamar. O povo Judeu é distinto do estado de Israel, é composto de pessoas trabalhadoras honestas como qualquer de nós. Esta minha expressão de exceção é importante para mim como católico que continua se inspirando na bíblia e como cidadão de um país que se formou através de uma guerra de libertação anticolonial que também custou muito sangue.
Assentes estas duas ressalvas, gostaria de tecer algumas considerações congruentes com o meu entusiasmo sobre este tema e com a forma como a bíblia o aborda. Ela ensina-nos a apreciar a terra como um legado inalienável. O que quer dizer que tratar a terra de outra forma, seria não só anticonstitucional e antipatriótico, mas até contrário aos preceitos divinos. Por outras palavras, em Moçambique, o DUAT é concedido como forma de gestão do uso da terra. Segue-se por via de dedução que, para pessoas jurídicas ou indivíduos estrangeiros, o DUAT deve ser muito mais restritivo, afim de facilitar o resgate nacional, e sobretudo afim de priorizar os cidadãos Moçambicanos. E o direito de resgate da terra das mãos do estrangeiro (versículos 23 e 24).
Esta é para mim a inspiração divina de como devemos, como cidadãos, e através do estado, tratar da terra que herdamos como pais, herança comum que não deve ser alienada, de acordo com o Artigo 6 da nossa Constituição.
Nesse contexto, ressalto também os artigos de caráter científico de gestão de terras de pousio (versículos 4 a 7). Não é uma maravilha que este conhecimento científico seja até consagrado no livro sagrado?
Ou ainda a questão das terras dos sacerdotes e o respeito que devemos aos nossos sacerdotes, verdadeiros herdeiros da tradição bíblica do ministério dos Levitas (versículos 32 a 34).
Eis aqui uma das minhas interpretações do Livro Sagrado, que gostaria de partilhar.
Finalmente, custa imenso a muitos Moçambicanos ver que no nosso país, o negócio de terras não toma em conta ou menospreza os laços umbilicais culturais e espirituais, para além dos laços econômicos, que ao longo dos anos se estabelecem entre as populações e a sua terra, laços esses que são cimentados pelo enterro dos seus mortos perto de onde vivem. Nalgumas tradições, desenterrar os mortos é considerado como sacrilégio. Incomodar os mortos é atrair a ira dos Deuses, acreditamos na nossa espiritualidade Africana.
A relação entre o estado e o povo vai continuar a ser o meu tema central, porque esta relação é importante para a harmonia nacional. Esta relação se deteriora com estes menosprezos pela cultura. Uma abordagem sociológica e pesquisas prévias sobre as complexidades da questão de terras nos locais onde se devem desenvolver grandes projetos de índole nacional ou pública permitiria relançar as relações soberano-estado sobre melhores bases de confiança, objetivo último do Contrato Social entre os dois.
Canhandula, Jose A
Tete, Julho de 2024
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