É claro que a cultura Swahili passou a interessar-me porque para além das emissões em Swahili que partiam da Beira algures no tempo da guerra colonial, eu fiquei muito exposto e profundamente afectado por esta cultura através da minha associação com a Tanzânia, onde me graduei em relações internacionais, trabalhei um total de dez anos e onde acabei me casando. Um dos meus filhos optou pela nacionalidade da mãe. A filha era já da nacionalidade. Para alem disso, trabalhei quatro anos no Quénia, o que me deu oportunidade de viver a realidade dos Macondes naquele país, apátridas e anónimos, sem acesso aos serviços públicos durante décadas, antes de acederem a nacionalidade Queniana faz hoje quase dez anos. Para mim, catorze anos em meio Swahili.
EU próprio sou produto de um casamento de um dos generais Ngoni da migração Zulu da África do Sul para o Norte do Continente, passando por todos estes países, incluindo Moçambique. Um dos chefes de guerra teria casado com uma das mulheres que o seu grupo capturou de uma tribo rival derrotada nos planaltos da Angónia. Essa seria minha bisavó. Sou, portanto, de sangue misto, descendente de uma escrava.
E o meu percurso na vida fez da minha família ainda mais miscigenada. O filho mais velho casou-se com uma Canadiana e tem hoje duas graças mistas. O que me leva a observar as tendências humanas globais e a afirmar que dentro em breve não haverá mais raça pura, se deveras houvera.
Tudo isto um prelúdio para dedicar uma prosa à raça humana através da visão Swahili das coisas. Por muito tempo teremos ainda uma raça branca que se acha superior e com direito a direitos (tautologia necessária). Por muito tempo teremos uma raça negra que ainda se comporta como escrava, tentando embranquecer a pele com produtos químicos tóxicos, gastando rios de dinheiro que não chega para as propinas dos filhos, porque deve comprar perucas para dar ao seu cabelo natural uma aparência lisa do Europeu.
Cá para mim, pessoas que me são próximas sabem que isso não somente não me impressiona, até reduz a beleza que a natureza nos oferece. Minhas duas netas são mistas, mas por mais que se queira negar, é o sangue negro que as faz belas.
E que tem isso a ver com a cultura Swahili? Muito, porque a cultura Swahili é orgulhosa de si mesma e nunca tentou se explicar ou justificar. Nenhum ser humano, Africano ou Asiático, ou Europeu, ou de qualquer outra parte deve ser forçado a se explicar. A cultura Swahili transmite esse orgulho e nos ajuda a basear o nosso comportamento social em princípios humanos sólidos e solidários que reforçam a nossa humanidade livre. Humanidade essa, se reconheça, que foi espezinhada por séculos de escravatura, deixando nas nossas mentes uma sequela de inferioridade latente inconsciente.
A cultura Swahili é também Moçambicana na medida em que desde séculos abrangeu toda a costa de Sofala para o Norte até as ilhas Comores, por força de uma migração e de um comércio marítimo milenar.
Gostaria de partilhar alguns exemplos da cultura Swahili que me impressionam, pela maneira sublime como ela transmite o sentido de família e de solidariedade.
1. Relações de consanguinidade e pertença: Na cultura colonial portuguesa herdada, nós distinguimos o primo, o tio, a tia o sogro, de forma muito estanque e quase tendente a estabelecer distâncias entre pessoas familiares. Ao contrário, na cultura Swahili, apesar da riqueza vocabular, onde o tio e a tia são conhecidos como “mjomba”, “shangazi”, primos são conhecidos por “binamu”, raramente estas expressões se utilizam. Favorizam-se mais as expressões: para primo, “kaka”, “dada” (irmão, irmã). Na relação consanguinidade ninguém perceberá que este meu irmão é filho de outros pais, a não ser que eu seja obrigado explicar a origem dessa relação. O sogro é o pai “baba”; apesar de existir a expressão formal de sogro “baba mkwe”, não se acentua o facto de ser “mkwe”.
O tio é ainda mais expressivo porque o tio mais velho do meu pai o chamo “baba mkubwa” (meu pai mais velho) e o irmão mais novo do meu pai, “baba m’dogo”. Assim, “baba mkubwa” ou “baba m’dogo” (idem para a tia) é uma apelação que traz consigo peso social considerável, conferindo-lhes autoridade moral para me disciplinar em pé de igualdade com o meu próprio pai. Se for mais velho que o meu pai, mais autoridade do que a do pai procriador, mesmo que este esteja presente.
2. Relação do homem com a terra: este parece ser um conceito africano largo que não se limita à cultura Swahili, mas não baseio esta afirmação em pesquisa nenhuma. Apenas uma semelhança com a cultura Ngoni e outras que conheci. A relação do homem com a terra (atrevo-me a dizer em Africa?) é simbolizada pelo enterro do cordão umbilical uma vez a criança nascida. A vinda de outras culturas europeias e a adopção de medidas sanitárias como o parto num estabelecimento hospitalar diluíram esta prática e tradição importantes. Daí que na cultura Swahili a terra passa a ser inalienável, e esta inalienabilidade é simbolizada pelo enterro do nosso cordão umbilical. Nesse sentido, até é uma cultura consonante com a narrativa da bíblia cristã (ortodoxa ou católica ou protestante) – Levíticos 25: 23, 24 e 28. Em muitas etnias Swahili, até os mortos se enterram na machamba da família.
3. Solidariedade na comunidade: em função desta filosofia relacional surge também uma filosofia de solidariedade da família alargada, que não é muito comum nos nossos tempos. Tios, primos ou cunhados encontram pleno apoio nos meios urbanos, enquanto os pais, que ficaram na zona rural, não tem nenhuns meios de sustento do seu jovem emigrado para a cidade. Daí toda uma cadeia de dependências urbanas onde o primo ou o sobrinho presta os mais diversos serviços aos familiares que o receberam, em troca de hospedagem igual, alimentação igual e tratamento equitativo respeitoso e digno da pessoa, sem consideração pela sua condição de dependência.
Este tipo de relações cria em meios urbanos uma larga camada populacional que nunca enriquece por causa destes deveres socio-culturais para com o ente, o qual por sua vez acede a oportunidades do pequeno trabalho informal, que lhe dá a segurança e o orgulho de uma refeição merecida pelo trabalho. E o pequeno empreendedorismo (jua kali) faz com que, qualquer que seja a sua situação, o jovem do Quénia e da Tanzânia nunca anda descalço. Nestes dois países não existe mais casa de telhado de palha, apesar de a Tanzânia ter uma população de 65 milhões (2022) e o Quénia 54 milhões.
A obrigatoriedade social de solidariedade – os laços familiares estreitos fazem com que acontecimentos dentro da família nuclear sejam vistos pelos outros membros da família alargada como seu direito e dever. Na prática, a família alargada se auto-convida e se apodera do acontecimento, alegre ou triste, deixando a família nuclear isenta dos custos e procedimentos, para melhor passar o momento.
Nesse ponto, não estou a dizer que a nossa cultura seja diferente, mas que a influência colonial diluiu imensamente os nossos valores em favor de uma cultura europeia que revolve em redor da família nuclear quase exclusivamente, e vê como um peso e um inconveniente a solidariedade alargada. Sobretudo numa conjuntura económica difícil como é a de Moçambique.
Ainda persiste na cultura Swahili o sentido de que a minha criança, até ser adulta, é criança de toda a aldeia, e os mais velhos e adultos da aldeia tem, não só o dever, mas até o direito de chamar o meu filho à disciplina e à cultura.
O reverso a moeda desta cultura Swahili é que a família alargada leva muito tempo a acumular riqueza porquanto outros membros da família continuem na pobreza. É uma cultura muito mais solidária, onde a distribuição da riqueza é muito mais horizontal e muito mais lenta, porque tendente a favorecer a equidade nas oportunidades.
Enfim termino esta dissertação espontânea e extemporânea, este cântico à cultura Swahili, apelando às nossas instâncias culturais nacionais a engajar-se sistemática e resolutamente na compilação de um compêndio das diversas culturas de Moçambique. Cinquenta anos são suficientes para a nossa educação começar a integrar melhor os nossos valores culturais. Uma forma de reforçar a identidade nacional que hoje assenta apenas nos ideais da luta armada de libertação nacional e no espaço geográfico. A história dos povos Moçambicanos é muito mais secular.
Como a história de Moçambique é relatada e ensinada vai condicionar o tipo de unidade nacional que a educação vai contribuir a forjar.
O povo Swahili, de Sofala a Mombasa (Fort Jesus no Quénia, construído pelos Portuenses), passando por Malindi e Port Lamu, é repositório digno e genuíno da história de navegação africana, um repertório de coesão social e de gosto pela vida e pelo próximo.
Mensagem central
A coesão, identidade e solidariedade nacionais começam na base: na família alargada, na aldeia ou quarteirão, e é fruto de uma tradição que se cultiva. Não são valores que se proclamam.
Canhandula
Tete, 19 de Setembro de 2024
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