Tentemos nos libertar do nó apertado ao nosso pescoço[1]
I. INTRODUCAO
Há tempos escrevi um artigo sobre o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) em Moçambique. Nele, estava eu a provar que a única essência africana daquele Banco é o nome e os seus empregados. De outra forma, ele alinha-se e representa outra forma de o capital internacional lidar com a África: declarando repetidas vezes uma parceria amigável e benevolente, ao mesmo tempo que vai reforçando a perpetuação de uma ordem económica fortemente e teimosamente desequilibrada. Você pode ler o artigo aqui. E espero que ele tenha também chegado à atenção do Representante do BAD em Maputo. Talvez eu venha um dia a traduzi-lo, porque realmente ele se aplica a todos os países africanos, incluindo os da banda do Norte de África.
Também escrevi um outro artigo sobre a instrumentalização gradual das Nações Unidas para encobrir processos que consolidam um sistema neocolonial que parece benevolente e disposto a ajudar, mas com um objectivo muito diferente: reforçar e perpetuar a actual ordem internacional. Esse artigo encontra-se aqui.
Para mais, produzi uma reflexão sobre a Estratégia Nacional de Desenvolvimento de Moçambique 2025-2044, que também está em português e pode ser lida aqui. Nela, elaborei sobre vários pontos, os mais importantes dos quais poderiam ser resumidos da seguinte forma:
O aumento em 2023 da Taxa Interbancária de Empréstimo pelo banco central (Banco de Moçambique) para 18,6% e 20,5%, forçando assim os bancos comerciais da praça a emprestar a taxas de juro ainda mais elevadas.
O aumento dos depósitos interbancários obrigatórios no Banco Central para 39% dos depósitos em moeda nacional e 39,5% dos depósitos em moeda estrangeira.
Ambas as ações sugaram a circulação de dinheiro da economia nacional, retirando o oxigénio às pequenas e médias empresas, favorecendo apenas os megaprojetos. Indo assim, consciente ou inconscientemente, contra a estratégia nacional de desenvolvimento adpotada.
A ausência de um papel para o banco central em toda esta estratégia nacional.
Uma estratégia para reduzir a pobreza, sem ousar eliminá-la. Consequentemente, lendo a maioria das metas da estratégia parece que estamos sendo mobilizados para proteger a pobreza e evitar o seu desaparecimento.
Uma estratégia em que a demografia é apresentada como um problema que precisa ser resolvido, num eufemismo de “dividendo demográfico”, não como uma capacidade, produtiva, nacional, colectiva, importante, ativa. Vista desse ângulo negativo, pode-se entender por que é que o governo é insensível ao fato de que a cada ano cerca de 300.000 jovens entram no mercado de trabalho, dos quais apenas menos de 14.000 encontram emprego.
A estratégia propõe o controle da natalidade, em vez de adotar uma estratégia social de educação e de opções sociais e econômicas que não exerçam violência sobre a pessoa humana. Assim, a demografia, as pessoas, são um fardo para a economia – o que nos dá o direito de indagar- economia de quem então?
II. FINANCIAMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO[2]
Eu afirmei mais acima que estou alvejando a corda amarrada em volta do nosso pescoço. Como também escrevi antes sobre o ADB ou sobre blueinvesting, ou ainda sobre os Inspetores Fiscais Sem Fronteiras (sob a cobertura das Nações Unidas). Apesar (ou por causa?) de todas essas iniciativas amigáveis, tendemos a ficar pior a cada ano que passa.
Todas essas iniciativas amigas, focalizadas em aliviar a pobreza em África são precisamente isso: aliviar, tornar a pobreza suportável sem a eliminar, a risco de perturbar a ordem atual. Transferir o peso de um ombro para o outro ombro! Multiplicar processos e conferências impressionistas, falar de parcerias, mas garantir que nada mude.
Financiamento para o Desenvolvimento é uma conferência que terá lugar em Sevilha, Espanha, de 30 de Junho a 03 de Julho de 2025. Uma conferência internacional patrocinada pela UNCTAD, PNUD, OMC, FMI, Banco Mundial, com os seguintes objetivos: Abordar as lacunas de financiamento no Sul Global e gerir o fluxo de investimentos privados de forma aceitável. Esta é a próxima etapa de vários outros processos interligados, sendo o mais recente o Pacto para o Futuro[3], aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2024, com a intenção declarada de garantir
O desenvolvimento sustentável e o financiamento para o Desenvolvimento,
O tema central deste artigo.
Paz e segurança internacionais,
Continuamos a observar que os que promovem mais guerras são aqueles que, por convenção internacional, são os mais responsáveis pela paz e segurança no mundo, sentados no Conselho de Segurança da ONU, com poderes extraordinários de veto.
Ciência, tecnologia, inovação e cooperação digital,
Juventude e gerações futuras,
Este tema nos lembra de como a Europa tem medo da juventude africana inundar aquele continente e até que ponto eles estão preparados para erguer barreiras no cinturão do Sahel. O Sahel em África transformou-se em fronteira Austral da Europa, com soldados estrangeiros em países soberanos.
Transformando a governança global,
Todos nós seguimos como o Conselho de Segurança funciona, como os chefes do FMI e do Banco Mundial são selecionados: o FMI sendo espaço reservado para da Europa, e o Banco Mundial para a América.
Pode-se escrever todo um tratado sobre processos que reciclam as ideias da Conferencia de Cancún 1981 sobre Cooperação Norte/Sul para o Desenvolvimento[4], ao mesmo tempo que as desfiguram, viciando ideias já existentes com novos conceitos rebuscados, de modo a não resolver a questão central que pretendem abordar. Basta fazer referência aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) já existentes e seu grau de sucesso desde que foram lançados em 2015 (nove anos atrás), que por sua vez são sucessores dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) lançados em 2000.
O que estou dizendo: que o Pacto para o Futuro é outra ilusão, e aqui lamento resistir ao otimismo que me devia caracterizar, tendo trabalhado para as Nações Unidas, logo, meu empregador antigo. Será que os mesmos processos repetidos produzirão resultados diferentes?
Eu retorno de forma irresistível a uma conclusão teimosa: multiplicação de processos, para dar a impressão de movimento. Permita-me o leitor por exemplo, rever alguns dos ODS desde sua adoção em 2015, no que se refere a Moçambique. Ao fazê-lo, dispenso os relatórios oficiais existentes que li, lotados de indicadores impostos pela ordem internacional. Em vez disso, estou olhando para a realidade do terreno, adoptando indicadores humanos de impacto, processo e execução, não estatísticas abstratas extrapoladas:
ODS1: Acabar com a Pobreza: Contrariamente ao objetivo, os indicadores mostram que em Moçambique a pobreza aumentou e se transformou em miséria, apesar da abundância de recursos que, ao mesmo tempo, resultaram na implantação de megaprojetos no país. Cerca de 62% dos 33 milhões de pessoas são extremamente pobres. E ainda existem os “não extremamente pobres”...
ODS 3: Saúde: Embora os relatórios oficiais apresentam conquistas em matéria de saúde que dão impressão positiva (U5MR e CMR), esses indicadores estão fora de contexto. Os verdadeiros indicadores são
As elites que recorrem a serviços de saúde no exterior,
Medicamentos e equipamentos médicos escassos,
Muitas pessoas não têm dinheiro para ir ao hospital e só recorrem a unidade hospitalar em situação extrema e como último recurso, maioritariamente acabando por morrer,
Os médicos tem estado nos últimos dois anos em greves repetidas, não apenas a reclamar melhoria de salários, mas também reclamando a falta de condições de trabalho adequadas para salvar vidas.
ODS4: Educação: em Moçambique,
Muitas crianças ainda estudam sob árvores, sentam-se em tijolos ou no chão,
As criancas das elites estudam em escolas exclusivas ou no estrangeiro,
Livros e manuais escolares contêm grandes erros editoriais e informações erradas,
Em muitas escolas, professores dão aulas a mais de 100 alunos por sala de aula,
Testes e exames não desafiam intelectualmente os alunos a pensar e a se expressar por escrito, porque em todo o país invariavelmente os testes são todos baseados em questões de múltipla escolha,
Os professores são forçados a evidenciar resultados muito positivos no fim do ano escolar, senão correm o risco de serem demitidos.
ODS 6: Água de qualidade: A cólera é uma epidemia cíclica dos períodos chuvosos todos os anos e espera-se que continue, especialmente nos subúrbios de cidades e vilas.
ODS 8: Trabalho decente: como dito acima, todos os anos, Moçambique produz 300.000 jovens para o mercado de trabalho, dos quais, menos de 5% encontram emprego.
ODS16: Paz, Justiça: basta mencionar três eventos:
A guerra em Cabo Delgado que provocou o deslocamento forçado de centenas de milhares de pessoas,
Os sequestros repetidos e contínuos de empresários em Maputo,
A exclusão dos benefícios de financiamento e de emprego com base em opinião e pertença política.
ODS17: Parceria para os Objetivos: Moçambique está sendo forçado pelo FMI a reduzir os gastos públicos e a reduzir o recrutamento para o serviço público, ao mesmo tempo que o crescimento populacional produz todos os anos milhões de crianças para o ingresso escolar. Em 2024, Moçambique já tinha uma escassez de 16.000 professores[5]. O que acontecerá então em 2025 e nos anos seguintes, se a abordagem política e econômica permanecer a mesma, com professores que não recebem os seus direitos de horas extras e o 13º salário?
Ao ser forçado a estrangular a circulação de dinheiro, Moçambique está sendo impedido de melhorar a educação ou a saúde (ODS 3 e 4) pelos ditames do FMI. O mesmo FMI força o banco central a retirar liquidez aos bancos comerciais, os quais por sua vez, ficam incapacitados de oferecer créditos acessíveis para a produção, a construção ou reabilitação de infraestruturas sociais e econômicas, incapazes de promover a pequena indústria. Estes são os parceiros; estes são os patrocinadores do “financiamento para o desenvolvimento”.
Por outras expressões
Estou sugerindo que a atual ordem internacional está apenas multiplicando processos para dar a impressão de progresso, de modo a manter um sistema que garante prosperidade para os ricos por meio da perpetuação da pobreza no Sul Global, em África. É assim que (de novo tomando o meu país por exemplo característico):
Moçambique produz energia limpa, mas 70% dela vai para a África do Sul; o acesso à eletricidade em Moçambique é de 40%.
A eletricidade na África do Sul é 3 vezes mais barata do que em Moçambique, onde ela é produzida;
Da unidade de gás de Cabo Delgado exportada, Moçambique apenas ganha 14,5% do que ela custa no mercado europeu. Na verdade, o governo atual (2025) declarou que não tem intenção de renegociar os termos deste comércio. Confortando assim o capital internacional.
Mais de 300 pessoas foram assassinadas em manifestações pós-eleitorais em Moçambique, para manter este estado de coisas. Quem beneficia do status quo, supinamente ignorando o fato de que a população empobrecida se exprimiu de forma alta e clara?
Pode-se pegar o exemplo de Moçambique transpondo-o a muitos países africanos.
Estamos correndo no mesmo lugar. Primeiro foram os ODMs, depois os ODSs, agora o Pacto para o Futuro. Se iniciativas passadas no nível global permaneceram sem séquito, o que nos faz acreditar que, usando os mesmos processos, esta vai surtir?
Ao nível financeiro é onde nós somos fraquíssimos. Primeiro vieram os programas de ajustamento estrutural que liquidaram nossas indústrias e aprofundaram o nosso endividamento, transformando os nossos países em enormes supermercados abertos e sem fronteiras (sobretudo de produtos de segunda mão) para países industrializados.
Passamos por várias versões da mesma intenção: dar a impressão de progresso e garantir que continuemos exportadores de matérias-primas. Não houve nenhum financiamento de estradas e ferrovias ligando cidades internas para facilitar e tornar o comércio interno mais barato. Em vez disso, financiamento fácil para ferrovias e estradas para mercados externos para exportação e importação. A estrada Maputo-África do Sul é típica de uma excelente estrada para importação de alimentos provenientes do complexo agroindustrial da África do Sul (não haja a ilusão de que qualquer destes complexos pertence a algum negro na África do Sul), mas a estrada Maputo-Beira é lamentável, e se alguma existir que ligue Maputo a Pemba. As áreas do Norte produzem mais alimentos, mas não conseguem ser escoados ao Sul do mesmo país! Nenhum capital estrangeiro está pronto a investir nisso, mas foi célere na ferrovia Tete-Beira e Tete-Nacala, para a exportação do carvão.
A MARRABENTA DA DÍVIDA: Os nossos chefes de gestão financeira nacional em Maputo (coloque o nome da sua capital no lugar de “Maputo”) conhecem e integraram perfeitamente a linguagem da finança internacional. Ora estamos no reescalonamento da dívida; ora no refinanciamento da dívida, ora na reestruturação da dívida, ora no quadro de sustentabilidade da dívida, ora na troca da dívida (debt swap) – contra quê, ora em estratégia de prazo médio de gestão da dívida. Muitas expressões que confundem. E depois vem a programação pró-pobre. Até mesmo a expressão pro-poor dificilmente esconde a intenção: pró-pobre: precisamos que eles continuem pobres. Para fazer o quê? Para lhes fazer o bem e lavar a imagem do benfeitor.
A estratégia era e continua a ser a mesma: Não matar a galinha dos ovos de ouro, mas mantê-la naquela gaiola, dar-lhe a impressão de que é pobre por ter escolhido permanecer na gaiola. Arremessar-lhe alguns grãos e aguardar o ovo de ouro. Não matar, mas mantê-la perpetua e suficientemente fracos para apenas ser exclusivamente útil para os ricos.
E onde houver recursos importantes, introduzir a noção de PPP (Parcerias Público-Privadas), para que as elites tenham um cheirinho do capital internacional, para melhor protegerem os interesses do capital internacional no território que controlam.
O que é PPP e quem pode beneficiar dele em países Africanos como o meu? Obviamente, ou aqueles que têm acesso à grande finança ou aqueles que podem garantir favores: facilitar o registo, as isenções fiscais, a aquisição de terras produtivas, que pode forçar a deslocação de pessoas de áreas de produção ou de áreas cobiçadas pelo capital internacional. Essa é a contribuição de África, digamos e assumamos com eles, a nossa contribuição para o PPP. Isso é Cabo Delgado: Ainda nos admiramos que haja guerra lá? Alguém realmente acredita que a guerra em Cabo Delgado é contra o terrorismo? Pergunte ao PPP. Quanto a nós outros, não temos a certeza de que se trate de terroristas que vieram de Kibiti.
III. CONCLUSÃO
Enquanto isso, também estão trabalhando em outros lugares clubes exclusivos autointitulados e que têm seus próprios processos. Nós, que não estamos na mesa, apenas lemos nos meios de comunicação: o G20, o Clube de Davos, que desejam dominar o mundo e agora estão alarmados com os BRICS.
Voltemos ao tema: o objetivo da Conferência de Financiamento para o Desenvolvimento é de abordar as lacunas de financiamento no Sul Global e gerir os investimentos privados de forma responsável. Todos sabemos, e provamos com o caso de Moçambique, que as lacunas financeiras surgiram e são mantidas através do endividamento tempestivo e esmagador, seguido da exploração extrativa desfavorável. A menos que isso seja resolvido, a conferência serás mais um teatro discursivo.
Gerir o investimento privado de forma responsável: ora, o investimento privado como o da TotalEnergies em Cabo Delgado, não permitirá que ninguém interfira com o seu dinheiro. Não responde e não responderão perante ninguém. Nem mesmo perante o governo de Moçambique, como está afirmado por escrito e claramente no seu relatório sobre Cabo Delgado[6]. Podemos perguntar ao Biafra como a Elf-Aquitaine (agora TotalEnergies) se comportou lá.
Então, reduzir a pobreza passou a ser uma dança em círculos paralelos, sem a eliminar. Um discurso persistente apesar dos esforços dos ODS para realmente usar a expressão “eliminação da pobreza”.
Vale a pena participar?
Tudo vale a pena se a alma não é pequena, como se sói dizer. Claro. Quem estiver ausente não pode culpar ninguém por não ter sido capaz de influenciar na raiz, por não tentar corrigir um conjunto de conceitos errados que são promovidos em tais fóruns. Na base de conceitos errados, são formuladas regras e segue-se uma tentativa de generalizá-las. Se alguém for convidado, precisa de estar na mesa para aceitar ou se opor ao que está sendo promovido.
No entanto, a pobreza não será eliminada em conferencias multilaterais. Ela será eliminada em casa, por meio de um contrato social robusto, propositado e renovado entre o povo e seus governantes, o estado; não o PPP. Devemos separar e lidar distintamente com o capital internacional, em casa.
Ninguém nos salvará. Nós nos salvaremos a nós próprios. A alternativa é que nos resignemos a sobreviver na miséria coletiva, nós e nossos filhos[7].
Na minha experiência com estes processos internacionais,
Estas conferencias são espaços excelentes de aprendizagem da maquinaria internacional,
Elas permitem a promoção da sua própria narrativa e a correção da narrativa de outros sobre ti,
Elas são boas plataformas para identificar os melhores parceiros de negócios. E traze-los para um diálogo bilateral que assegure vantagens mútuas.
Em forma de fecho, permita-me um pequeno desvio para denunciar uma outra mentira que todos acabamos por adoptar: medir o crescimento econômico pelo prisma do PIB é uma ilusão que nos leva a outra distração: a de comparar o crescimento do nosso país ao de outros países; em vez de nos concentrarmos na medição interna, com os nossos indicadores endógenos de impacto, funcionamento e processos nacionais, os quais nos podem dar uma ideia mais objectiva e mais correcta e humana de como estamos andando como nação. Utilizando as mesmas áreas de desenvolvimento humano que foram definidas pelos ODS, mas com nossos indicadores: como e que o cidadão normal se está desenvolvendo. A comparação externa distrai-nos dos problemas reais e é direcionada a uma audiência alheia e estrangeira que talvez nem sequer esteja a ouvir.
A luta será dura.
A lua continua.
Canhandula,
Janeiro de 2025
[6] TotalEnergies publishes JC.Rufin’s report on human rights in Cabo Delgado, together with the action plan decided by the Mozambique LNG project partners | TotalEnergies.com
[7] Diz-se que Steve Biko, herói da luta pelo fim do Apartheid e pela liberdade do povo Sul-Africano, teria afirmado que “o escravo que nem sequer faz esforço para se libertar não merece a nossa compaixão”.

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