Que tem Moçambique, virado para o Indico, a ver com o Haiti, um país nas Caraíbas? O que pode Moçambique aprender da história do Haiti? A ver vamos. Mas primeiro, um pequeno périplo geopolítico.
1. Vamos primeiro à geografia
Uma grande parte dos meus compatriotas não terá ouvido falar de Haiti, como outros terão. Haiti é um país das Antilhas no mar das Caraíbas, Oceano Atlântico, a Nor-Sudeste de Cuba, a Leste da Jamaica, a Oeste de Puerto Rico e fazendo fronteira com a Republica Dominicana, com quem tem uma história comum e estreita. Haiti é um território de 27.800 quilômetros quadrados e uma população de 11,3 milhões. Comparada com a Província de Tete, de superfície de 98.400 quilômetros quadrados e uma população de cerca de 2,3 milhões de almas, o Haiti tem uma densidade populacional quinze vezes mais alta.
2. Segundo, à história
a. Datas marcantes (fonte https://www.bbc.com/news/world-latin-america-19548810, página consultada em 22 de Abril de 2023).
1492 -Cristóvão Colombo chega à ilha e dá-lhe o nome de ilha Hispaniola. Quatro anos mais tarde estabelece-se a primeira colônia Europeia no hemisfério ocidental.
1697 -A Espanha concede a parte ocidental da ilha a Franca, que passa a ser Haiti. A parte oriental seria mais tarde a Republica Dominicana.
1801 -Toussaint Louverture, um escravo que se tornou líder de uma guerrilha, Conquista Haiti e abole a escravatura e passa a ser o soberano de Haiti (na realidade de toda a ilha Hispaniola).
1804 -Expedição Francesa enviada pelo imperador Napoleão, derrotada pelo general Haitiano Jean Jacques Dessalines. Proclamada a independência de Haiti, primeira república nascida de uma revolta de escravos negros.
1915 -Os Estados Unidos invadem Haiti por medo de que um exemplo de escravos livres tão perto das suas fronteiras poderia ser seguido por outros escravos nos Estados Unidos.
1934 -Retirada dos Estados Unidos, continuando, entretanto, a controlar o fisco do país até 1947.
1957 -Francois "Papa Doc" Duvalier estabelece uma ditadura no país, um período de terror com ajuda de uma milicia que ele criou chamada Tonton Macoutes.
1971 -Papa Doc substituído pelo seu filho "Baby Doc" Duvalier.
1986 -Presidente Duvalier forcado ao exilio e fim de 29 anos de ditadura.
1990 -Padre Jean-Bertrand Aristides novo presidente, deposto no ano seguinte.
1994 -Invasão americana a pretexto de estabelecer a democracia e retorno de Jean-Bertrand Aristides.
2004 -Aristides exila-se, os Estados Unidos invadem, a pretexto de restaurar a democracia, uma forca das Nações Unidas instala-se.
2010 – Um terramoto mata mais de 200.000 pessoas na capital Port-au-Prince.
2016 – Um ciclone marítimo mata centenas de pessoas e destrói milhares de casas. Vários países Africanos contribuem com mais de $8 milhões e Senegal oferece terra e espaço para quem queira se estabelecer no continente.
2021 - Presidente Juvenal Moises e assassinado.
O Haiti tem uma história de escravatura e ocupação, resistência e orgulho nacional reprimido.
b. Esboço Narrativo
1) Colonização
Devo começar por informar o leitor que tomo o cuidado de não restringir a história de uma nação à chegada ou à passagem fortuita ou propositada de um pobre colono Italiano como Cristóvão Colombo, energúmeno e animado de um espirito aventureiro impulsionado por um mandato de um Papa medieval. Tal como Moçambique não começa a existir pela magia da passagem de um tal Vasco da Gama. Isto para dizer que apesar de eu começar com a história de Haiti no período da ocupação colonial, este é um país de uma população milenária proveniente do Continente Sul Americano.
Foi a essa população que se veio impor esta história iníqua que passo a narrar. E para fazê-lo, começo no ano 1492 quando Cristóvão Colombo, navegador Italiano de Genova, financiado pela coroa Espanhola, com motivos de exploração e colonização, e servindo-se da Bula Papal do Papa Sixtus IV, seguiu a caminho do ocidente. Na realidade, o papa confirmara o Tratado de Alcáçovas entre as coroas católicas de Espanha e Portugal, que garantia a Portugal a exploração e colonização de África e de todas as terras a leste do meridiano das Ilhas Canárias, enquanto reservava para a coroa de Espanha todas as terras a Ocidente. Este arranjo seria reconfirmado no Tratado de Tordezilhas de 1494. Esta divisão do mundo para fins exploratórios e de evangelização conferiu um direito moral ao colonialismo, na medida em que a evangelização e a ocupação de territórios alheios foram caminhando a par e passo, reforçando-se e reconfortando-se mutuamente.
Havia na ilha uma população nativa, chamada Taino e à chegada de Cristóvão Colombo pela primeira vez em 1492 a ilha passou a chamar-se Hispaniola. Entretanto, Colombo pensava ter chegado à China ou à Índia. A chegada dos Europeus dizimou a população da ilha porque os Europeus trouxeram doenças infecciosas para as quais os ilhéus não estavam imunizados ou preparados, tais como a febre tifoide e a varíola, epidemias dizimadoras que se manifestavam pela primeira vez naquela ilha no ano 1507.
Atrás dos Espanhóis vieram os Franceses e em 1697, a Espanha concede a parte ocidental da ilha à França, parte essa que viria a ser conhecida por Haiti. O colono francês introduziu plantações de açúcar e café, para as quais teve que importar escravos de África, uma vez dizimada a população autóctone. Estes braços transformaram a ilha numa colônia riquíssima, que lhe valeu o nome de “pérola das Antilhas” por causa da quantidade de riqueza que produziu para a coroa Francesa. Diz-se que a ilha foi no século 18 o maior produtor de açúcar e café, criando mais riqueza do que todo o continente norte-americano junto. Isso só foi possível com a importação de mais de 800.000 escravos de África, cuja maioria acabou morrendo de doenças e das condições de trabalho. Ainda assim, as estatísticas de 1789 mostram que de uma a população de 520.000 almas na ilha, mais de 452,000 eram escravos.
2) Revolução de Haiti (1791–1804)
A condição de escravatura não podia ser permanente e nos fins do século 18, os escravos começaram a abandonar as plantações para se estabelecerem em aldeias remotas e iniciar uma revolta. Foi Nessa altura que um escravo livre de nome Toussaint L'OUVERTURE tomou a liderança da revolta de quase meio milhão de escravos, conseguindo em 1802 proclamar-se Governador Geral de Haiti. Ato contínuo, o imperador Francês Napoleão Bonaparte enviou uma força expedicionária para restabelecer o controle francês. A força foi derrotada, mas Louverture foi capturado e exilado e feito prisioneiro na França tendo morrido de tuberculose em Paris em 1803. Entretanto os escravos venceram as forças Francesas em Novembro de 1803 e no ano seguinte, sob o comando de um General Dessalines, proclamaram a independência de Haiti. Uma independência que não foi reconhecida pela Franca, Estados Unidos e Reino Unido por mais de quarenta anos.
Com efeito, em 1825, o Rei da Franca enviou uma expedição militar para tentar re-subjugar Haiti, a qual foi derrotada. Seguiu-se um bloqueio econômico que forçou o então Presidente de Haiti (Boyer) a um tratado que finalmente reconhecia a soberania de Haiti, em troca de uma indemnização colonial de 150 milhões de Francos, mais tarde reduzidos a 90 milhões (equivalente a $31 biliões ao câmbio de hoje).
Assim, até 1900, cerca de 80% das despesas de Haiti representavam pagamentos da dívida colonial, e para o conseguir, o país teve de se endividar seriamente e ainda por cima junto dos mesmos países que o não reconheciam. Esta dívida colonial odiosa foi liquidada por inteiro só em 1947 (122 anos!). Pode-se assim entrever como a dívida colonial constituiu e constitui o grande impedimento ao desenvolvimento de Haiti. As relações com os países do hemisfério foram sempre muito difíceis. Em 1889 por exemplo, os Estados Unidos tentaram forçar Haiti a aceitar a implantação de uma base militar na ilha (em Mole Saint Nicholas), mas isso foi rejeitado pelo então Presidente Hipólito.
A parte oriental da ilha (possessão Espanhola)
Tendo-se libertado do jugo colonial Francês, Haiti sempre desejou libertar e anexar a parte Oriental, ainda nas mãos dos Espanhóis. Em 1821, o Presidente do Haiti, Jean-Pierre Boyer invadiu e expulsou os Espanhóis de Santo Domingo e ocupou aquela parte da ilha por 22 anos. Foi por intervenção da Franca e do Reino Unido que a ocupação acabou e se proclamou a República Dominicana em 1844. Haiti tentou mais duas vezes, em 1849 e em 1855 reunificar a ilha, mas em vão. A Republica Dominicana foi também ocupada pelos Franceses, reocupada pela Espanha (1861-1865) e ocupada também pelos Estados Unidos (1916-1924). Assim vão duas partes da mesma ilha, com economias distintamente diferentes por causa da história e do imposto colonial.
3) Os Estados Unidos ocupam Haiti (1915–1934)
A independência de Haiti representou um escândalo de soberania no espaço que os Estados Unidos consideravam (e consideram ainda) seu quintal. Um relatório da CIA nota que Haiti não é um país longínquo. Foi a primeira república negra e o segundo país independente no hemisfério ocidental. Como fruto de uma revolta vitoriosa de escravos, Haiti representava a esperança que os escravos negros nos Estados Unidos podiam nutrir. Foi por isso que os Estados Unidos não reconheceram a independência do país até 1862: A população branca temia que a existência de Haiti fosse uma ameaça a sua economia, dependente que era da mão de obra escrava negra.
Foi nessa lógica que os Estados Unidos invadiram Haiti em 1915, tendo imposto uma nova constituição, a qual passou a incluir o direito de posse de terras em Haiti por parte de estrangeiros, o que foi repudiado de forma vigorosa pelos cidadãos de Haiti. Mas enfim, ficou.
4) Depois da Ocupação
O período de 1934 a 1957 for caraterizado por ingerências estrangeiras. Este país permaneceu sempre desestabilizado, com golpes de estado e assassinatos sucessivos de cinco presidentes, até a chegada da Dinastia ditatorial dos Duvalier, de pai e filho 1957 a 1986, durante a qual cerca de 60.000 cidadãos foram assassinados com a ajuda de uma milicia terrorista (Tonton Macoutes). Durante este período, muitos Haitianos se exilaram e o país perdeu muito cérebro.
A destituição dos Duvalier sucedeu-se o Presidente Jean-Bertrand Aristide que reinou um ano, foi deposto em 1991, exilado, e voltou com a invasão dos Estados Unidos de 1994 e retomou a presidência do país até a sua deposição por mais um golpe.
Em 2004 uma missão de estabilização das Nações Unidas (MINUSTAH) foi estabelecida em Haiti, a qual não teve muita aceitação, devido ao seu comportamento público e por ter criado um desastre sanitário de cólera que ceifou a vida de mais de 10.000 Haitianos.
Para além de ser um país caraterizado por uma instabilidade política permanente e uma ingerência externa insidiosa (em Julho de 2021, o Presidente Moise foi assassinado e até Marco de 2022, Haiti ainda não tinha um novo Presidente), este país sofre também de desastres naturais de grande envergadura e repetidos:
Em 2004 um ciclone que matou mais de 3.000 pessoas, provocou desabamento de terras e cheias.
Em 2008 quatro ciclones sucessivos mataram mais de 300 pessoas e 800.000 pessoas ficaram sem abrigo e em crise alimentar.
O terramoto de 2010 que matou entre cerca de 300.000 e deixou um milhão e meio de pessoas sem abrigo, para além de ter destruído o palácio presidencial.
Um novo grande terramoto em 2021, que para além de mortos causou danos enormes a economia do pais e provocou a propagação do crime e um levantamento violento da população.
3. Conclusões/Pensamentos
A luta constante por uma existência no meio de uma pobreza extrema e de uma malha de interesses estrangeiros, a gestão da soberania nacional contra ventos e marés, constitui a luta contínua do povo de Haiti. o Haiti não e assim tão diferente de Moçambique, um país rico com uma população pobre. A história dirá, mas uma demonstração de solidariedade com o povo Haitiano, assim como com outros povos Africanos livres mas subjugados em todo o mundo é de interesse futuro para Moçambique. Aprender e comparar a história de outros povos ajuda-nos a situarmo-nos na história e na continuidade do tempo. Assim, o desterro de Toussaint Louverture (1802) faz-me lembrar, entre outros, a captura de Gungunhana em Chaimite (1895) por Joaquim A. Mouzinho de Albuquerque, então Governador Geral Português de Moçambique, e o seu desterro, primeiro para Lisboa, e em seguida para a ilha Terceira (Açores).
Muitos países Africanos já demonstraram esta consciência de solidariedade para com um povo Africano lançado a mais de cinco mil quilômetros do Continente por uma escravatura que afetou todo o Continente. Haiti trabalhou para ser admitido a membro da Uniao Africana, mas temos sempre juristas e interesses que se ocupam de apresentar uma interpretação interessada dos textos, e o pedido acabou por ser chumbado. Que desperdício humano! Erro que a história irá determinar.
Somos independentes, mas a independencia defende-se constantemente. Muitos dos países desenvolvidos que vem extrair recursos naturais em Moçambique não respeitam esta soberania e só nos toleram porque estamos sentados sobre as riquezas e sabem que se formos mais firmes, acabarão por ter que negociar com um país mais exigente e mais protetor dos seus recursos. Potencialmente, Moçambique tem uma capacidade de soberania muito maior do que Haiti, situado que está nas bárbaras dos Estados Unidos. Não nos esqueçamos, entretanto, que se os esquemas para bajulação dos nossos dirigentes não funcionarem, a vontade e os meios de ocupação territorial não estão tão longe como se pensa.
4. Proposta de lições para Moçambique
Com a independência, o colonialismo deu lugar ao neocolonialismo, e o antigo colono aprendeu que nem precisa mais de violência física se pode usar suavemente da violência psicológica e saber como lidar com os novos chefes da terra: o suborno, a adulação, as condecorações intempestivas e súbitas. Aprenderam que o exemplo de escravos livres, na perspectiva do tempo, é uma experiencia recente para Moçambique, cuja independência teve consequências muito profundas para Rodésia e o Apartheid na África do Sul.
Desastres Naturais, ocupação estrangeira parecem assuntos remotos e ocasionais e possivelmente fortuitos. Podem muito bem não ser e precisamos de maior capacidade de informação, análise e discernimento. A dívida colonial de Haiti acabou, passou-se à pilhagem, incluindo dos seres humanos: a pretexto de ajudar crianças abandonadas depois dos terramotos, certas organizações não governamentais americanas foram surpreendidas a traficar crianças. Acredita em orfanatos? Leia e perca um tempinho a analisar. Haiti representa um povo várias vezes humilhado.
Certos países olham para o Haiti como um território que devia ser desprovido de populações, para não constituir uma barreira moral à pilhagem das suas matérias primas, incluído terras. Para que a pilhagem corporativa de Haiti fosse possível, fez-se e continua-se a fazer tudo para que o país continue humanamente debilitado e desesperado. A emigração perigosa acaba por ser uma alternativa desesperada a uma condição de vida (sobrevivência) sub-humana.
A política Francesa da dívidas não se observa só no século passado, nem só no hemisfério Norte, mas também nas suas ex-colônias francesas e em tudo quanto a França toca em África. Leia as verdadeiras razoes do envolvimento da Franca na guerra do Biafra , um território que não era e nunca foi Frances. A política Francesa em África deve ser objeto de nossa atenção e análise, sobretudo que a França é um parceiro econômico importante.
Jose, 10 de Maio de 2023
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