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O DESAFIO QUE A PALESTINA CONSTITUI PARA A AFRICA

Writer's picture: canhandulacanhandula

Tradução Livre

 

ROAPE, 13 de novembro de 2023

 

Yusuf Serunkuma argumenta que a ocupação e o assassinato de palestinos em Gaza por parte de Israel são hoje o que os britânicos foram no Quénia, na Índia e no Zimbabué, o que a Alemanha foi na Namíbia, o que os franceses foram na Argélia e os americanos no Vietname. O massacre de palestinianos ora em curso deve despertar-nos para a adoção urgente de uma linguagem local para caraterizarmos os nossos sonhos. Noções como as de democracia, ou a chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos, estão sendo expostas, mais uma vez, como uma farsa e uma mentira, revelando nada mais do que o interesse do próprio ocidente – que não carateriza nem a nossa realidade nem as nossas aspirações.

 

Por Yusuf Serunkuma

 

Há muitas lições a tirar da violência colonial contínua na Palestina. Uma destas lições – especialmente para os intelectuais e para as elites políticas africanas – é reiterar que as bases analíticas e os instrumentos conceptuais que utilizamos frequentemente para compreender a nossa realidade político-económica – e para definir as nossas aspirações –são apenas distrações da realidade de uma maquinaria extrativista colonial sem limites.

 

De novo ficou mais do que demonstrado que os atuais conceitos e jogos de palavras que utilizamos para negociarmos a nossa política e a nossa economia são distrações do poder bruto e da violência das superpotências: conceitos tais como democracia, os direitos humanos, o direito internacional e a propriedade privada. Estes são termos que continuamos a utilizar para discutir e a conceptualizar o presente pós-colonial de África, e a aspirar a um “futuro mais brilhante”.  Contudo, cada um destes conceitos foi exposto como vazio, à medida que Israel continua a massacrar os palestinianos – apoderando-se das suas terras durante os últimos 75 anos de forma lenta, constante, violenta, e administrando um sistema de apartheid durante décadas.

 

O que estamos a testemunhar na Palestina – tanto em Gaza como na Cisjordânia – é uma reprodução mais contemporânea do colonialismo e das suas manifestações: apartheid, violência, extermínio étnico e genocídio. Na verdade, o filósofo económico judeu Karl Marx estava certo: os acontecimentos históricos estão condenados a acontecer duas vezes (na verdade talvez mais vezes!) A primeira vez como uma tragédia, e a segunda vez como uma farsa. Mas esta segunda vez (e subsequentemente) – como acrescentou o filósofo Herbert Marcuse – passa a ser mais assustadora do que a primeira. Israel na Palestina reflete hoje o mesmo comportamento britânico no Quénia, na Índia, no Zimbabué (antiga Rodésia) e em várias partes do mundo que colonizou. Israel espelha os alemães na Namíbia, os bóeres e os britânicos na África do Sul, os franceses na Argélia e no Haiti, os belgas no Congo-Zaire, ou os portugueses e espanhóis na América Latina. Não existiam naquela altura meios de comunicação social para transmitir estes crimes em tempo instantâneo, mas, como mostram registos dispersos e censurados, o genocídio, a exterminação étnica e os massacres estavam na ordem do dia.

 

Mesmo expressões supostamente negativas como “notícias falsas”, autocracia e “monstros” de África, que são habitualmente usados ​​para descrever as supostas deficiências da liderança africana, foram, mais uma vez, desmascarados como termos de maior utilidade para o mundo ocidental, embora sem sentido.  Ironicamente, estes termos – notícias falsas, autocracia, violência, racismo, distinções tais como “nós” e “eles” – estão plenamente desmascaradas como ingredientes absolutos da reclamação moral e da dominação euro-americanos: “Somos mais importantes do que eles”. “Nossa violência contra eles é justificada, a violência deles contra nós é simplesmente má.”

 

Este é o projeto do chamado direito internacional. Como descreveu Siba Grovogui, os europeus e os americanos são os “soberanos” absolutos, e existem outros “quase-soberanos”, e o degrau mais baixo é ocupado pelos africanos. Isto significa que as vidas dos quase-soberanos e dos “africanos” não valem nada. O que parece ser a sua propriedade – a terra, o gás e os recursos marinhos – na verdade pertence ao mundo ocidental, que é livre de se apoderar sempre que desejar. Embora eu tenha escrito sobre o dilema golpe-democracia em África, para sublinhar a falta de sentido destas deceções de linguagem e de poder, o jornalista Richard Medhurst ofereceu-nos uma análise convincente sobre como a corrida aos recursos (na forma do proposto canal Ben Gurion) se faz através do “caso clássico de genocídio” em Gaza.

 

Enquanto testemunhamos o poder bruto de tamanho assustador – crimes de guerra, genocídio, extermínio de clãs, apartheid – a desenrolar-se nos ecrãs das nossas televisões e telefones portáveis, não consigo imaginar quão inúteis e indefesos se sentem os académicos descoloniais, ativistas da democracia e entusiastas dos direitos humanos, entre outros. Eu sei que nosso silêncio é ensurdecedor. Não consigo imaginar o sentimento de inutilidade destes académicos e ativistas, especialmente se edificaram uma carreira inteira imaginando e apontando os Estados Unidos, ou a Europa Ocidental (Alemanha, França e Reino Unido) como exemplos deste idealismo. Deviam sentir-se ainda mais perturbados continuarem a filosofar, defender e trabalhar para promover este idealismo enquanto beneficiam da “benevolência” da Europa Ocidental – muitas vezes sob a forma de financiamento de projetos. O que antes parecia verdade agora está jogado pela janela fora. Este idealismo é exacta e precisamente a “útil deceção” e as cantigas de embalar para a elite liberal de África em expansão, enquanto os seus recursos são saqueados silenciosa e metodicamente.

 

O Nosso Desafio

 

Dececiona-me ver que, anos após o fim do colonialismo, não tenhamos conseguido recuperar a autoridade para definir noções que representem a nossa realidade. Consideremos, por exemplo, ‘Ubuntu’ entre o povo Bantu; ‘Xeer’ entre os somalis, ou ‘Ummah’ na tradição islâmica. Estes e muitos outros conceitos e sistemas úteis da humanidade africana - e a partilha equitativa de recursos e governação - permanecem secundários em relação à chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma declaração que é muitas vezes aplicada de forma descarada e seletiva (e muito frequentemente completamente abandonada).

 

Embora estas nossas noções tenham atraído a atenção de alguns estudiosos (por exemplo memoravelmente, Dani Nabudere, do Uganda, e Marcus Garvey, da Jamaica), estas noções permaneceram largamente marginais na determinação do presente pós-colonial de África. Ainda falamos de forma hipotética e romântica sobre os sistemas de conhecimento, as tradições filosóficas, as noções de governação e a medicina (fitoterápica) de África – muitas vezes, como lindas peças de museu – sem realmente procurarmos defini-los e integrá-los nos nossos ecossistemas políticos e económicos do dia-a-dia.

 

Muitas vezes pergunto-me porque é que seria absolutamente necessário mudar periodicamente de líderes – a chamada marca da democracia – em vez de desenvolver uma infraestrutura intelectual e política que garanta que a liderança realmente trabalhe para o povo. (A propósito, apesar de terem sido concebidas para beneficiar interesses egoístas, especialmente traficantes de armas e capitalistas extrativos, a Europa e a América do Norte são geridas com estruturas imutáveis. Podem mudar de presidentes por uma questão de relações públicas, mas as políticas internas e externas permanecem inalteradas). Consideremos este quadro por um outro ângulo: Como é que realmente funciona a tradição islâmica da “Ummah” – sentir a dor uns dos outros apesar de não terem ligações sanguíneas, com pessoas que talvez nunca venhamos a conhecer?

 

Que conjunto de sistemas de crenças permite estas ligações e como podemos utilizar alguns deles para garantir que as nossas comunidades tenham diferentes pontos de discussão – diferentes do chamado coro de cânticos de “democracia” – sobre a construção de futuros humanos e de sistemas políticos. O que ‘Ubuntu’ significa para a economia? Como o ‘Ubuntu’ se pode traduzir em sistema de justiça? Como é que o Islão concebe a economia, o regime bancário, o seguro, etc.?

 

Navegando no Espaço da Assimilação

 

Como estudante de David Scott – Conscripts of Modernity – tenho plena consciência de que somos recrutados para esta modernidade colonial exploradora contínua, onde o alcance da nossa imaginação já está delimitado. Somos produtos da escola colonial, desejando simplesmente manter-nos em cativeiro. E estando em posição mais fraca – militarmente e financeiramente – pode parecer difícil que nos imaginemos a sonhar e a desenvolver uma linguagem e um sistema inteiramente novos de fazer as coisas.

 

Embora aprecie estas restrições, a minha opinião é que nem conseguimos sequer explorar o espaço limitado que está disponível para exercer a nossa autonomia. No entanto, ainda existem pequenos espaços. Consideremos, por exemplo, a decisão do Ruanda de eliminar todos os requisitos de visto para os africanos que entram no Ruanda em 2018. Porque é que todos os outros países não seguiram o exemplo? (É vergonhoso que os europeus e os americanos desfrutem de viagens relativamente gratuitas através do continente africano, enquanto os concidadãos africanos são sistematicamente impedidos de viajar através do seu próprio continente).

 

Embora compreenda ideias de nacionalismo e de fronteiras – muitas vezes articuladas de forma problemática como questão de segurança – devemos compreender que é a nossa pobreza (perpetrada pelo mundo ocidental) que justifica a necessidade absoluta de fronteiras. As fronteiras na Europa só são impostas aos países pobres de fora da Europa, mas geralmente estão ausentes no espaço europeu. Não vimos placas de sinalização “Apenas Passaportes da UE” ou “Residentes na Europa” em aeroportos e outras passagens de fronteira, indicando entrada e saída mais fáceis para os concidadãos europeus?

 

Queridos africanos: se os desastres militares no Iraque e no Afeganistão não nos abriram os olhos; se o bombardeamento massivo da Líbia pela NATO “pela democracia”, país mais rico e livre de dívidas de África, bombardeamento esse que efetivamente o transformou num mercado de escravos, não nos acordou, ou se o golpe contra um Presidente democraticamente eleito do Egipto, Mohammad Morsi, também não abriu os nossos olhos, então a Palestina deve agora despertar-nos do nosso sono profundo.

 

A linguagem da democracia, ou a chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos (sem que haja nada de universal nelas) não é apenas estranha, mas totalmente insuficiente para caraterizar a nossa humanidade coletiva. Eles usam estas afirmações de forma explícita e descarada para os seus interesses – e nós estamos estupidamente encantados com eles. A chamada democracia competitiva e política multipartidária nunca responderão aos nossos desafios de governação, a menos que encontremos um fio condutor – uma humanidade comum e resiliente que responda à questão: em primeiro lugar, porque é que precisamos de liderança? À medida que passamos vidas inteiras a constituir partidos e a competir uns contra os outros – ao ponto de nos matarmos uns aos outros pela democracia – o colonizador está entre nós a explorar estas brechas em benefício próprio.

 

Se pudéssemos aprender alguma coisa com o extermínio étnico em curso na Palestina e a intenção de cometer genocídio expressada pelos mais altos responsáveis ​​israelitas, é que o chamado direito internacional é simplesmente poder bruto e controlo financeiro e militar.

 

A Palestina deve agora despertar-nos do nosso sono profundo!

 

Uma versão desta postagem do blog apareceu como “O atoleiro político-intelectual da Palestina e da África” na The Pan-African Review.

 

Yusuf Serunkuma é colaborador regular do roape.net e colunista de jornais do Uganda, é também acadêmico e dramaturgo. Em 2014, a Fountain Publishers publicou a sua primeira peça, The Snake Farmers, que foi recebida com aclamação no Uganda, no Quénia e no Ruanda.

 


Durban

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