Uma análise crítica leiga oferecida aos gestores e instâncias de decisão
Foi publicada em Janeiro deste ano 2024 a lei que cria o Fundo Soberano de Moçambique (FSM doravante). Fundo esse que, de acordo com o respectivo Boletim da República[1], é alimentado por receitas provenientes do petróleo e do gás da Baica do Rovuma, e do retorno dos investimentos das receitas do mesmo FSM.
Objectivos:
(a) Apoiar o desenvolvimento do país,
(b) Acumular poupanças para as gerações futuras; e
(c) Estabilizar o orçamento do estado.
A nossa análise parcial e necessariamente de conhecimento limitado (leigo) destina-se a contribuir através de sugestões que possam ajudar no melhoramento do foco destes recursos importantes.
Com efeito, pela leitura que se nos oferece, a criação do FSM é a concretização de uma ambição de aceder a um grupo de países com esta prática, particularmente aqueles que também gozam de um manancial de riquezas semelhantes. Entretanto, não nos parece que se tenha tido em conta o nível de pobreza, de necessidades prementes e persistentes no nosso país. Tendo em conta todos os problemas, a começar pela insegurança alimentar e passando pela qualidade de educação, nós nos atreveríamos a sugerir a inversão das prioridades, a transformação deste Fundo já criado, em Fundo de combate e fim à Pobreza, antes de pretendermos entrar num clube internacional de países que já resolveram os problemas de base das suas populações nos âmbitos da segurança alimentar, educação e saúde.
Outrossim, isolar estas receitas do grande problema de pobreza do país; isolar estas grandes receitas de outras receitas importantes do país que foram passadas em surdina, tais como as provenientes do carvão de Tete, da Hidroeléctrica do Zambeze, do gás de Pande e das areias pesadas, constitui uma falta de integração destas riquezas naturais do pais na solução dos nossos problemas de desenvolvimento, aliás objectivo primeiro declarado do FSM. Não nos surpreende por isso que a lei mencione uma só vez a ENDE e ainda assim, de forma ténue e fugaz.
A nossa leitura não se pode divorciar de outras análises feitas em torno dos mega projectos nacionais, tais como a tese de 2008 de Carlos Nuno Castelo Branco, apresentada no Museu de Historia Natural de Maputo[2], onde são feitas, entre outras, três afirmações importantes para esta nossa análise, a saber
A indústria extractiva tem o potencial de gerar um enorme fluxo de receitas públicas por algumas décadas, assim permitindo que Moçambique deixe de ser dependente da ajuda externa e, por conseguinte, consolide a soberania do Estado e do Povo sobre os seus assuntos políticos, económicos e sociais. Se estas receitas forem utilizadas para gerar reservas e oportunidades de desenvolvimento alargado e diversificado da base produtiva, tecnológica e comercial, então Moçambique poderá tornar a indústria extractiva numa alavanca de desenvolvimento real.- Cfr. Os Mega Projectos em Moçambique, que contribuição para a economia nacional – Carlos Nuno Castelo Branco, P. 14.
Este argumento está ligado à intenção do FSM de apoiar o Orçamento do Estado (OR) – Art 8.4 (a) e (b). Achamos que precisamos de agravar a percentagem de apoio orçamental talvez para 75%, afim de reduzir a dependência do OE de uma ajuda externa confortável mas anestesiante, de forma determinante e determinada. Porque depender de empréstimos externos enquanto guardamos o nosso dinheiro? Qual é e para quem o benefício?
Para que isso se realize, é inevitável que se olhe de novo para os acordos de exploração afim de maximizar as receitas públicas para apoiar o Orçamento do Estado (os impostos, os royalties e os preços de venda). Para nós portanto, as reservas para o futuro tomariam a terceira posição nas prioridades de aplicação deste fundo.
Os ganhos públicos com a exploração dos recursos não renováveis sejam aplicados quer na formação de reservas, na criação de outras oportunidades de desenvolvimento com base alargada e diversificada, no fornecimento de serviços sociais públicos fundamentais e na construção de sistemas de protecção social, de modo a que as futuras gerações de Moçambicanos tenham plena oportunidade de desenvolverem o País mesmo quando os actuais recursos não existirem. – Ibid, p.15
Quarenta e nove anos de independência passados, já é mais do que urgente atacar
o problema da criança que se senta no chão e estuda debaixo da árvore enquanto não chover. E se chover….
o problema da qualidade de uma educação que perpetua a ignorância através de medidas demagógicas como as passagens automáticas, e os testes de respostas múltiplas, que definham a capacidade do esforço intelectual, a arte de escrever e o raciocínio crítico do estudante. Num mundo onde já ao lado na Africa do Sul se introduziu a codagem e programação de computadores como educação básica, a introdução gradual da programação no ensino ajuda a criança a crescer com uma mentalidade de resolução de problemas. A continuar como estamos, o nosso sistema apenas produz jovens que servem mais para revender produtos de segunda mão, não produtores de ideias e riquezas. Num mundo cada vez mais dominado pela automação, esta é a oportunidade.
Argumentamos de igual forma que o futuro começa hoje: pensar em reforçar o sistema de proteção social, para além do previsto no Artigo 9.2. A proteção social assegurará um futuro dignificante ao trabalhador de hoje. Por outras palavras, a proteção social faz parte da estratégia do futuro, não só parta as gerações futuras, mas também para as presentes gerações no futuro.
Numa palavra, não devíamos incubar fundos futuros antes de resolver problemas graves presentes, tais como a cólera cíclica, a fome e a insegurança alimentar crónicas nas Províncias de Gaza, Inhambane e Tete. A soberania política passa pela soberania alimentar.
Neste processo, há alguns debates políticos básicos que é preciso que a sociedade civil sustente e ajude a resolver. Um é o debate sobre o envolvimento do Estado, e em especial de seus representantes e funcionários a nível mais alto, nos interesses da indústria extractiva. Enquanto este envolvimento continuar, será muito difícil ter um Estado minimamente isento para tratar dos assuntos do desenvolvimento da economia nacional, em vez dos assuntos dos dividendos que os seus funcionários recebem da indústria. – Ibid, p. 16
Neste ponto, nós levantamos as nossas reservas sobre o Artigo 7, que diz respeito à domiciliação do FSM no Banco de Moçambique (BM), à luz da tendência de gestão do BM baseada no controle, na imposição de taxas excessivamente altas à banca nacional[3]. Seria lugar para perguntar se esta não seria a oportunidade para a criação do Banco de Desenvolvimento preconizado nas duas ENDEs. Seria esta a verdadeira ligação orgânica entre o primeiro objectivo do FSM tal que enunciado acima, e a ENDE 2025-2034. Enquanto o BM não seja actor de promoção e facilitação da actividade económica no pais, a domiciliação do FSM neste Banco regulador nos parece uma decisão politica que limitará severamente a realização dos objectivos de um tal Fundo, seja qual for a versão do fundo adoptada.
A leitura do relatório anual do BNI[4] de 2023 sobre a política monetária[5] demonstra que o Banco de Moçambique tem vindo a forçar a banca nacional a um regime de onze varas que não lhe permite contribuir para o desenvolvimento nacional; como então se espera que este mesmo banco se comporte de forma diferente na gestão do FSM?
E mais: considerando as circunstâncias onde o Governador do BM se recusou a comparecer perante a Assembleia da República (AR), podemos deduzir que existe um poder político protector que se sobrepõe à AR e que deu ao Governador a veleidade de ignorar as intimações de um órgão de soberania. Esta coragem só pode ser resultado da subordinação das estruturas do estado ao poder político e da confusão sobre onde se situa a soberania.
Dentro deste espírito, ousamos propor certas modificações nalguns artigos desta lei, afim de devolver aos órgãos de soberania e recentrar certas atribuições delegadas ao governo, tais como a validação da seleção do auditor independente, melhor domiciliada na AR (Art 19.2 (k)). De igual forma, a relação entre o Comité de Supervisão, o BM e o Conselho Consultivo talvez seja melhor explicada referindo-nos ao Artigo 35. Em cujo caso, o nosso argumento cessa aqui, dado que o Conselho de Ministros certamente se encarregará de delimitar as competências e fazê-las trabalhar de forma convergente.
...para conquistarmos o direito de protagonismo que afirmamos querer ter, e cumprirmos o dever de cidadãos que reclamam pelo direito de exercer poder na gestão dos recursos que são seus e do presente e do futuro com que sonham. – Ibid. P.18
Fica claro que se o povo é o grande soberano e que se este FSM deve ser mesmo soberano, então devem igualmente ser revistos os artigos 30.5, onde se diz largamente e de forma simplista que o relatório do FSM será posto a disposição da AR. Nós postulamos que mais do que “estar a disposição” o relatório estatutário deve ser submetido à aprovação da AR. Assim como o Artigo 32 que diz que compete ao governo aprovar a indicação do auditor externo. Um papel da AR. Por fim, que os relatórios estejam disponíveis, pressupõe que “até que sejam solicitados”. Ao contrário, para reforçar o contrato social entre o povo e o se mandatário, o estado, estes relatórios devem ser publicados.
Não foi integrada neste FSM a questão da formação técnica especializada do Moçambicano nas áreas de produção que alimentam o Fundo. Os Moçambicanos não tendo especialização nas actividades importantes no alto mar, tais como a medição, o armazenamento, a inspeção e a auditoria da produção, etc, aspectos todos que ficam ao cuidado do explorador interessado. É o concessionário que determina que quantidades vai extrair, que quantidades e qualidades vai declarar como extraídas, quantidades armazenadas, quantidades e qualidade do produto exportado, o preço, e consequentemente a taxa de royalties e de impostos que vai pagar. É demasiado poder e conflito de interesses que se justifica porque Moçambique não tem estas qualificações. O que se passa no alto mar continua a ser “segredo dos deuses” até que Moçambique invista a sério e com propósito nas suas capacidades técnicas.
Por isso, e para concluir, voltamos ao nosso argumento central: não se pode acumular para o futuro quando a soberania sobre os recursos que são explorados e exportados hoje ainda não está assente. Não há futuro sem soberania agora. Não há soberania no futuro, que não exista agora.
Guardar um fundo soberano nestas condições equivale a dizer que é importante manter a pobreza de hoje para a riqueza de amanhã. A charrua teria sido colocada à frente dos bois de tracção?
Jose
Tete, Outubro de 2024
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