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ESTRATEGIAS NACIONAIS DE DESNVOLVIMENTO leitura longa

Writer's picture: canhandulacanhandula

I.                   INTRODUCAO

 

Um ressalvo loguinho à partida: trata-se aqui de uma leitura leiga, de entre tantos outros milhares de leituras que terão sido feitas destas estratégias.  A minha análise, necessariamente muito longa, foi motivada por ter notado a existência de duas estratégias que se sobrepõem no tempo, procurando compreender a sua motivação evolutiva, e para apresentar um ponto de vista crítico de um cidadão não perito, como contribuição para o melhoramento destas estratégias.  A minha contribuição debruça-se sobre

  • a Estratégia Nacional de Desenvolvimento (ENDE, doravante) 2015-2035[1], e

  • a ENDE 2025-2044[2], que tem a vantagem de ainda não ter entrado em vigor, e de ter sido aprovada pela Assembleia da República[3].

 

A questão imediata que se nos põe é: qual é o valor da intercessão de dez anos (2025-2035) das duas estratégias?  Apesar de se referir à experiência da primeira década de vigência da primeira ENDE e de enumerar alguns alcances como ponto de partida, não se vislumbra no segundo documento, uma validação dos resultados dos dez primeiros anos.  Uma tal avaliação, mesmo que fosse um único capítulo, validaria a inda mais a segunda ENDE.  

 

A segunda ENDE dá melhor relevância ao capital humano, ao passo que a primeira se focalizou mais nos recursos naturais.  Esta inversão de valores do primeiro documento foi uma oportunidade perdida de   caracterizar as condições de vida da população, como ponto de partida fundamental para um plano de carácter nacional.  Na segunda ENDE, o progresso do país e o bem-estar do povo estão melhor integradas.

 

II.                A ENDE 2015-2035

 

a)      A leitura desta ENDE suscita as seguintes discussões e reflexões:

 

1)      Polos de desenvolvimento e processo de industrialização: esta redação foi feita como se o processo de industrialização acontecesse num país cuja economia nunca teve estruturas.  Assim, descreve um processo sem mencionar as indústrias que já existiram à independência e que foram liquidadas com a adesão de Moçambique ao FMI e ao Banco Mundial em 1984.

 

2)  A ENDE prevê a capitalização dos Moçambicanos e a mobilização de financiamentos para a execução desta estratégia.  Para isso, foi preconizada a criação de um Banco de Desenvolvimento como instrumento-pilar do plano.  Porém, a ênfase sobre o sector privado perde de vista a primazia do sector familiar.  Esta orientação precoce virada para o grande capital que só está ao alcance de uma pequena elite urbana e ignora as populações rurais e peri-urbanas.  Resta-nos portanto analisar as orientações politico-financeiras da banca, o que tentamos fazer no parágrafo 6 abaixo.

 

3)      O Produto Interno Bruto (PIB): a adopção de uma linguagem pública fácil demonstra uma inércia que nos impede de imaginar parâmetros económicos mais adaptados às nossas necessidades, induzindo-nos na distração da comparação fácil da nossa economia com a economia de outros países.  O apego a expressões tais como PIB dá a falsa impressão de sucesso.  Não teríamos imaginação suficiente para descrever a saúde da nossa economia em relação à resposta que ela dá às necessidades de saúde, alimentação, educação, água, energia, habitação e dignidade do povo moçambicano?  A introspecção é mais importante do que a comparação com o vizinho.

 

4)      A análise FOFA não demonstra como esta se integra na estratégia, em particular a resolução das questões de

  • Elevado índice de VIH/SIDA e de

  • Dispersão espacial da população.

 

5)      O processo de industrialização tal como elaborado neste documento, (p. 18) menciona uma série de princípios, mas não assenta a estratégia na história industrial do país, nem menciona zonas do país onde essas indústrias existiram e operaram, tais como açucareiras, têxteis, metalúrgicas, do processamento de produtos alimentares, da borracha, do vidro, etc.  Assim, a estratégia parece partir dum país com base zero.  Seria deveras por receio de mencionar como estas indústrias foram falidas e extirpadas? Não analisar a desindustrialização é uma omissão grave, quaisquer que sejam os motivos, que aliás são conhecidos.  Porquê este receio?  A pesar de  abalar com o estabelecimento, a honestidade intelectual é uma premissa do sucesso de qualquer estratégia.  Omitir e ignorar é prolongar a pobreza. É mais cego aquele que não quer ver, do que aquele que não pode ver.

 

6)      Sobre as estruturas e fontes de financiamento: pela leitura que fazemos da sua missão, nós tendemos a assumir que o papel do Banco de Desenvolvimento teria sido atribuído ao Banco Nacional de Investimentos (BNI).  Sendo verdade[4], para analisar a adequação do banco na operacionalização desta ENDE, ou na sua sucessora, socorremo-nos do relatório de 2023 do BNI, que reza (p. 4, crédito e taxas de juro):

Em 2023, o mercado de crédito continuou a ser marcado por condições creditícias restritivas caracterizadas, sobretudo, por taxas de juros reais elevadas e restrições de liquidez resultantes de incrementos sucessivos de taxas de juros de referência e dos coeficientes de reserva obrigatórias.  Entre 2021 e 2022, o Banco de Moçambique aumentou a taxa de juro de política monetária (MIMO) em 700 pontos de base saindo de 10.25 no início de 2021 para 17.25 em 2022 e 2023, por um lado, e por outro, aumentou os coeficientes de reservas obrigatórias para passivos em moeda nacional e externa em 10.5% e 11.5% respectivamente, em Dezembro de 2022 para 39% e 39.5% em Dezembro de 2023. O que gerou restrições de liquidez aos bancos e acresceu os custos de capital para os bancos.
  • A pergunta óbvia seria: regimentado desta forma, o capital está ao serviço de quem?  Nestas condições, obviamente o Banco de Moçambique não joga o papel facilitador da economia.  Ao contrário, exerce um papel limitativo do potencial dos bancos comerciais de impulsionar o desenvolvimento da economia.  Entrevê-se aí o papel alienado das instituições financeiras em relação à ENDE, através de políticas monetárias que não respondem, e na realidade nem consideram, o plano  nacional, certamente pressionadas por instituições financeiras internacionais, as quais, através da sua influência no Banco central, perpetuam assim a pobreza, objectivo último do Banco Mundial e do FMI.

 

  • Cabe a nós portanto a tarefa de rever, não só as relações entre o banco central e as instituições de Bretton Woods, mas também as relações entre o banco central e o estado, como executor da politica do estado, portanto instituição de vanguarda no sucesso da ENDE.  De outra forma, a política monetária não responderá nunca à estratégia nacional.  Porque não estaria virada à população, 65% da qual é rural.    Na realidade os 35% de população urbana inclui todos os 66 centros urbanos, dos quais 55 são pequenas urbes, com uma população de tendência económica rural[5].  Nós teríamos a temeridade de dizer que a população rural é mais perto de 80%. Com que acesso a que capital?

 

7)      O desenvolvimento de infraestruturas preconizado na ENDE (p. 26) não faz menção nenhuma da Estrada Nacional No 1, linha nevrálgica das infraestruturas nacionais, nem se debruça sobre a necessidade, que nós achamos mais do que prioritária, de uma rede ferroviária no sentido Norte-Sul, de acordo com a configuração territorial.  Pelo contrário, o  documento perpetua uma economia virada para a exportação, economia de orientação colonial onde a redução do custo do transporte nacional interno não aparece como prioritária. A contenção dos custos faz parte de uma estratégia económica firme.

 

8)      Metas: As metas propostas não demonstram ambição nenhuma.  Por exemplo, as metas da provisão da água potável, (parágrafo 100), prevê que se atinja o acesso universal em 2035.  Após 60 anos de independência, este plano ainda promove indirectamente a inauguração de poços de água como se fosse desenvolvimento.  Até lá!  A este ritmo e por este andar, só atingiremos a cobertura universal em 2090, altura em que, de todas as formas, a evolução demográfica terá por sua vez tornado este objectivo obsoleto, irrelevante e ultrapassado.

 

9)      Não está claro como a expansão do crédito rural se fará, esse ela existe, à luz do que foi acima descrito sobre o BNI.  Assim, o sistema bancário privado (parágrafo 139) não pode constituir o financiador das actividades produtivas: ele parece estar virado e limitado à especulação financeira, dados os juros praticados sobre os empréstimos.  Ele não pode responder a esta estratégia.  Pelo contrário, ele induz o pequeno empreendedor (paragrafo 167) a se refugiar na economia informal.

 

  • Que a base da ENDE seja a criação de zonas económicas especiais e parques industriais passa a ser um conceito constrangido pelas limitações impostas pelo grande capital: a fixação pela macroeconomia, que não chega nem afecta o meio rural, onde vive a maioria da população, e que por via de maioria, devia ser o alvo da ENDE. 


  • Assim, o camponês acabou inventando uma forma extraordinária de resiliência, que não conta com a intervenção do banco, nem mesmo do estado: o seu dia semanal de mercado, à berma da estrada mais movimentada, feira dos seus produtos frescos, perecíveis, produtos de segunda mão, pequenos animais, roupa e calçado de segunda mão, produtos plásticos, tudo quanto esteja ao alcance do bolso rural.  Desta forma, o Moçambicano sem acesso ao crédito (rural ou outro) gere à sua maneira a economia que melhor responde às suas necessidades pessoais e de família, necessidades básicas humanas:

    • a pequena iluminação com painéis solares baratos chineses,

    • o dinheiro necessário para finalmente poder ir ao centro de saúde para aquela doença que não conseguia tratar por falta de dinheiro,

    • levar o seu filho à escola, mesmo que seja tarde porque não tinha como pagar as propinas a tempo,

    • finalmente poder reparar o telhado de plástico rasgado, e talvez finalmente comprar uma bicicleta.  Para transportar o carvão vegetal ou a lenha para venda.  Uma economia sem exponencial, de sobrevivência eterna, até os fins da sua vida.  O comprador citadino deste carvão ainda quer negociar o preço com o pobre camponês, mas não tem coragem de negociar preços nos supermercados e paga a sua compra sem resmungar.

 

  • A maioria dos Moçambicanos vive portanto de uma economia que, apesar de ser importante do ponto de vista de cobertura demográfica, permanece marginal porque não tem apoio financeiro estruturante ou apenas institucional do estado.  São estas microeconomias e micro-decisões condicionadas que caracterizam o espaço económico nacional.

 

10)  Queremos deixar aqui apenas um marco sobre a questão demográfica tal como ela nos é apresentada  (p. 47). Voltaremos questão de estatísticas na ENDE 2025-2044.

Ano

2012

2015

2020

2025

2030

2035

População (milhões)

23,760

25,728

27,870

31,665

35,979

40,880

Dívida externa (biliões)

4,8

9,7

13,3

20,2

28,8

22,2

 

  • Quanto à dívida externa (nada a ver com a análise demográfica), este quadro silenciosamente sugere que aceitemos e nos resignemos a viver com uma dívida externa crescente, a dependências do capital internacional sendo uma condição à qual estamos aparentemente condenados.  Algumas (raras) experiências nacionais mostraram que é possível viver com uma dívida externa mínima, ou mesmo sem ela, sobretudo um país com enormes recursos naturais.  Claro que o capital internacional não vai deixar que países africanos sejam financeiramente soberanos e independentes.  Tal foi a motivação da destruição manu militari de alguns deles (Líbia, Iraque).  Nós ousaríamos dizer que com esforço, visão e sacrifício, Moçambique pode até ser uma excepção, um exemplo de soberania a vários níveis.

 

b)      Concluindo sobre a ENDE 2015-2025


Esta estratégia está permeada de uma tendência de fusão entre governo e estado.  Este abraço de dois conceitos muito distintos é em primeiro lugar histórico, mas permaneceu na linguagem, na mentalidade e nas atitudes do funcionário público.  O governo se sobrepõe ao estado na medida em que as atribuições do estado são assumidas por um governo que em princípio muda de cinco em cinco anos.  O plano está assim dependente de veleidades de um governo que vai estar ocupado por eleições um ano antes do quinquénio, ameaçando a continuidade da própria ENDE, até que o governo assegure a sua continuidade no poder.


Tanto a ENDE 2015-2035 como a ENDE 2025-2044 usam a expressão Governo e Estado de forma alternativa e indistinta. E ao preferir realçar o governo, este minimiza o estado por via discursiva.  A superposição do governo ao estado vicia ambas as estratégias, tendendo a fazê-las fugir à supervisão do estado.  Este fato não surpreende na medida em que o estado, à independência, cumpria o programa do partido único.  Governo, estado e partido estavam em osmose.  Entretanto, a relação institucional evoluiu depois dos acordos de paz de 1992.  As mentalidades resistiram a esta mudança fundamental, a qual modifica ipso facto o contrato social entre as partes: o povo e o estado, devendo as outras instituições (governo, partido) passar a ser intermediárias no processo de diálogo entre o soberano (o povo) e o seu delegado (o estado).


Este é um plano de ação concebido para se alinhar com a periodicidade de eleições.  Isso representa uma fraqueza fundamental na estratégia de um estado eterno.

Sobre a evolução demográfica, considerações ainda mais adiante. 


De forma agregada:

  • Algumas das estatísticas são pouco fiáveis, tais como o desemprego, que está caracterizado abaixo de 20%.  Achamos que esta minimização adia o desemprego como um problema que deve ser encarado urgentemente e dá a falsa sensação de ser um problema menor.  Na realidade, o que é o vendedor ambulante?

  • A inundação do mercado por produtos de segunda mão ao alcance do bolso comum sufoca o pequeno empreendedor e inviabiliza o florescer de uma indústria nacional pequena ou média.  Este aspecto não é discutido nestas duas ENDE[6].

  • Não está analisada a transformação de Moçambique e a sua estagnação actual como grande supermercado aberto a produtos externos, incluindo hortaliças, batata, cenoura, roupa de segunda mão, viaturas de segunda mão, combustível adulterado, etc.  Até a melancia que se vende nas estradas da cidade de Tete é proveniente do Zimbabwe e da Zâmbia.   Passar em silêncio o impacto do movimento destes produtos sobre a agricultura e a indústria nacionais enfraquece a própria estratégia.

 

 

III.             A ENDE 2025-2044

 

 

1.      Este é um documento muito mais bem estruturado.  Entretanto, não podemos nos impedir de continuar a observar a preocupação sempre macroeconómica, sem considerar as bases  microeconómicas: a produção de base.  Parece-nos que o exemplo da China, onde a industrialização começou por empoderar a indústria caseira das famílias, seria o modelo mais adequado às realidades de uma economia preponderantemente rural. A informação de que 34,66% da nossa população é urbana esconde o facto de que destes 34,66%, uma boa metade ainda é dependente de uma economia rural, como tentamos provar no paragrafo 6 da análise da ENDE 2015-2025.  Um tal ajuste estatístico nos daria uma melhor plataforma para a definição de uma estratégia económica que responda mais adequadamente à realidade nacional.

 

  • A limitação de uma premissa de estatísticas positivas minimizantes reside na distorção de todo o cálculo subsequente do esforço necessário para resolver o problema em questão.  Baseado nas tendências demográficas sugeridas (p. 33), vê-se claramente que o núcleo do problema permanece escondido – a juventude, a qual está definida na faixa etária dos 15 a 35 anos.  Para nós, seria ainda jovem o indivíduo de 45 anos, deveras até de 50 anos.  Assim, a juventude representaria cerca de 48% da população.  Nesta perspectiva, a ENDE reconhecendo que 33,4% dos jovens se encontram desempregados oferece uma mensagem de urgência à questão e grandeza do desemprego.  A juventude representa um tsunami que já partiu, e o que resta a qualquer economia africana é preparar uma resposta à altura da força assim criada.

 

 

2.      A questão demográfica em vários pontos do documento é apresentada mais como um problema que deve ser contido do que uma força positiva (p. 33).  Este ponto de vista vicia a estratégia de desenvolvimento, porque isola a demografia como um assunto a tratar, em relação à pressão que ela exerce sobre os recursos e serviços públicos, como se o normal fosse uma demografia estanque.  Pensamos nós que a gestão e expansão dos serviços públicos é que devia se subordinar ao crescimento demográfico inevitável, que se deve influenciar, não controlar.  Assim, o centro de gravidade da estratégia devia corresponder a objectivos da realização e agenciamento do homem, não à preservação da natureza.  Neste contexto, as tragédias actuais da falência do contrato social entre o estado e o povo na Tanzânia[7] e no Quénia[8] deviam servir de ponto de referência e lição para Moçambique.

 

  • A priorização de programas de conservação, parques nacionais e reservas de caça cujo financiamento nunca é nacional nestes dois países, levou a conflitos que ainda persistem entre o estado e os seus financiadores internacionais por um lado, e por outro, populações nacionais inteiras que ficaram deserdadas das suas terras ancestrais. O povo se apercebeu lentamente de que afinal de contas ele é o soberano, enquanto que o estado, manipulado por um governo aliciado por financiamento externo não transparente e fácil, pretende que se esqueceu de que é mandatário e guardião da coisa pública em nome desse povo supinamente ignorado.  E essa acordar súbito que continua a dar ao Presidente Ruto[9], ao seu governo e ao parlamento, noites brancas.

 

  • Na pagina 77, a estratégia propõe que se garanta que o crescimento demográfico seja sustentável e compatível com a  preservação dos recursos naturais e qualidade do meio ambiente, quase sugerindo que a demografia é um problema e uma ameaça a natureza!  Para nós, o discurso académico que adopta os slogans internacionais de “população e dividendo demográfico, saúde sexual e reprodutiva” camufla uma verdadeira guerra contra a demografia africana crescente.

 

3.      O crescimento demográfico negativo projectado[10] – página 63: Esta hipótese (1.8%) certamente responde a desígnios estrangeiros que receiam o crescimento demográfico irresistível de África.  Ora vejamos: na situação corrente, a densidade populacional de Moçambique é de apenas 42 pessoas/Km2 e pode-se comparar com a de países como a Tanzânia, com 70/Km2, Quénia com 99/Km2 ou com um parceiro, o Ruanda, a 575/Km2.  Talvez a questão demográfica, vista por este ângulo nos pudesse ajudar a ajustar a nossa perspectiva estratégica. 

 

  • Enquanto este documento projecta-nos a 47 milhões de Moçambicanos  em 2045, outras projeções sugerem que venhamos a sere 57,8 milhões.  Mesmo assim, a densidade demográfica seria de apenas 74/Km2.  Qual é então o verdadeiro objectivo ou motivação da redução do crescimento demográfico?

 

4.      A demografia é claramente alvo de desígnios e interesses estrangeiros em Moçambique.


(a)   Durante a colonização do Continente nos séculos passados, a Europa contava com 400 milhões de habitantes, altura em que toda a África tinha apenas 100 milhões (metade da população actual da Nigéria).  Esta força demográfica da Europa facilitou a colonização do nosso continente.  Hoje, enquanto a Africa cresceu para 1.2 biliões de pessoas,  a Europa encontra-se estagnada pouco acima dos dois ou três séculos passados, a apenas 500 milhões.  A África tem portanto a capacidade demográfica de colonizar a Europa.  Este é o verdadeiro medo que faz com que países do Norte adoptem e forcem a África a adoptar medidas de contenção do crescimento, e de nos fazer considerar a migração (em particular para os países do Norte, mas não só) como um crime[11].  E toda uma rede de financiamento europeu aos países tampões do Norte de África (Mauritânia, Marrocos, Tunísia, Argélia, Líbia, Egipto) para impedir os movimentos migratórios e a subida do custo (não reembolsável) do visto[12].  E a imposição subtil de programas e medidas de redução da natalidade em África, a promoção de contraceptivos nas escolas, resultando em desmaios e infertilidade por causa de fibróides e outras doenças induzidas, a coberto de planeamento familiar e de liberdade de decisão e escolha!

 

(b)   Países parceiros que tem maior problema demográfico como o Ruanda, com mais de 550p/Km2 e que de repente nos vem ajudar na guerra de Cabo Delgado, devem nos interpelar e nos remeter à história:  Quem não aprende da história dos outros, arrisca-se a repetir erros perfeitamente evitáveis.  Não nos parece que tenhamos compreendido que esse e outros países têm desígnios de resolver o seu problema demográfico e suprir a sua pobreza económica olhando para o leste da RDC[13], e porque não, para outros países menos povoados.

 

(c)   Como foi dito acima, esta ENDE faz menção do crescimento demográfico e do êxito das zonas rurais para as cidades no seu sumário executivo, como preliminares importantes a ter em conta.  Assim, ele estabelece correlação entre a transformação estrutural da economia e a evolução demográfica, apesar de (mais adiante) adoptar ou propor a adopção de programas que consideramos negativos, desnecessários e ditados por interesses estrangeiros, camuflados de empoderamento da mulher, linguagem camuflada para a promoção de contraceptivos e outros aspectos de saúde reprodutiva que estão a deformar a nossa juventude estudantil. 

 

 

5.      Sobre a análise das fraquezas (p45): neste capítulo, o documento identifica a predominância do sector informal, mas o relaciona apenas com a “redução da base tributária, limitando a capacidade de o governo financiar serviços públicos e infraestruturas e limitando o acesso ao crédito”.  Nada pode estar mais longe da verdade! Em Tete, o sector informal está sendo taxado, e o cobrador circula todos os dias.  mas sem melhoramentos nas infraestruturas, na limpeza, na pavimentação dos grandes mercados de Kwachena, da Matema, etc ou dos vários mercados da cidade de Moatize, ou a instalação de facilidades públicas de água e saneamento.  Verdadeiras incubadoras de cólera.  E ainda nos vamos surpreender que a cólera venha a ressurgir!  O acesso ao crédito pelo pequeno empreendedor:  Esse crédito acessível foi já objecto de nossa análise na página 2 acima sobre  “estruturas e fontes de financiamento”.

 

  • Por isso, analisada a questão deste angulo, se percebe que ao adoptar uma forma rígida de “formalizar o sector informal” (página 71) em vez de preconizar a incentivação do sector informal como forma de autoemprego, a estratégia falha no reconhecimento da dinâmica existente e chama para si responsabilidades que nos primeiros dez anos não conseguiu exercer. 

 

 

6.      O parágrafo 133 prevê um apoio humanitário aos deslocados internos, como se daqui a 20 anos, os deslocados internos passassem ainda a constituir parte do panorama demográfico deste país.  Prevê-se que a situação de deslocamento perdure até lá?  Não devia a ENDE ao contrário estabelecer metas para a resolução do deslocamento interno?

 

7.      Duas metas muito positivas que devemos realçar aqui, pelo impacto que elas podem ter na população e na percepção da relação entre o estado e o soberano, percepção essa que nesta altura é muito pobre.

 

  • Na página 84 se descrevem as Infraestruturas, organização e o ordenamento territorial com o objectivo de estimular o investimento em energias limpas e renováveis para reduzir o custo de energia e mitigar o impacto ambientais e promover a sustentabilidade a longo prazo.  Muito acertado, para quem observa o tráfego e a venda do carvão vegetal (não  o mineral) nos eixos rodoviários de Tete-Zâmbia, Tete-Zimbabwe, Tete-Malawi, como uma prática de sobrevivência económica de há mais de cinquenta anos.  Numa Província onde o meio ambiente já é pobre, esta atenção é urgente.

 

  • Modernizar infraestruturas administrativas, modernizar instalações e processos, promover a eficiência, transparência, acessibilidade dos serviços públicos.  Lembra-me da intervenção de uma figura política importante, Sérgio Vieira, que falava da qualidade do atendimento e da falta de respeito pelo público por parte do funcionário público. O atendimento ao público parece mais um favor que o funcionário se digna fazer a este público, o qual acabou se resignando (mesmo no banco, filas enormes podem ser vistas ao sol de Tete, à espera que o banco aceite o seu dinheiro!).  A cultura do trabalho está sendo afectada pelo tempo que o funcionário passa no tik-tok, whatsap, enquanto o humilde e intimidado cliente tenta lhe falar ou espera.

 

  • Achamos ser urgente a digitalização dos arquivos e a utilização mais eficaz de índices pessoais tais que o NUIT, o telefone portável e outras formas de identificação individual para facilitar a prestação e a postagem de serviços.  A digitalização dos arquivos do Conselho Executivo de Tete seria urgente, antes que venhamos um dia a lamentar que infelizmente pegaram fogo.  Na minha experiência, a obtenção de um DUAT para a minha casa levou dois anos!  E se por azar tivesse pegado fogo (um fio eléctrico mal isolado ou outro incidente infeliz), lá se iam dois anos, e recomeçaria de novo, recorrendo aos arquivos da família, porque o Conselho infelizmente não estaria em posição de ajudar! 

 

8.      As metas descritas nas páginas 86-87, para 20 anos, são metas sem ambição. 

  • Acesso a saúde de 67.1% a 78.5% e água de 53.6% para 85%, em 20 anos?

  • Cartas topográficas para apenas 50,188KM2 num país de mais de 786,000Km2, significa que daqui a vinte anos, apesar das tecnologias já existentes (google, satélites, drones), continuaremos a ser objecto de cobiça territorial porque outros países vão observar lacunas muito fáceis de explorar.

  • Reduzir a adulteração dos combustíveis de 40% (indicador já em si crítico neste momento) para 20.4% em vinte anos?

  • Para cima disso, enquanto outros já estão a falar da introdução de viaturas eléctricas e energias limpas que Moçambique prioriza para a exportação, por depender do capital internacional.

 

9.      Os Planos de estruturação urbana (p.98) - analisam muito pouco a migração irrepressível para as cidades e a necessidade de um planeamento prévio, ou da criação de novas cidades, e menos ainda a necessidade de expansão das redes de água e saneamento, estradas  e electrificação, em previsão e à luz das tendências. Nada sobre a necessidade gerada pelo  crescimento inexorável de movimentos demográficos perfeitamente previsíveis. O que significa que daqui a vinte anos, as nossa cidades continuarão a crescer de maneira insalubre, sem acesso à água potável e saneamento nas periferias.  A cólera,  os desabamentos de terras, os alagamentos que vitimizam mais as camadas pobres que enchem as nossas periferias  e os fogos causados por ligações eléctricas ilegais e fortuitas, são todas calamidades perfeitamente previsíveis.  Não se tratará nem de desastres naturais nem de mudanças climáticas, mas antes da falta de planeamento territorial prévio, perfeitamente exequível.  Tratar-se-ia da não integração das tendências demográficas  crescentes na estratégia, apesar de terem sido identificadas como um factor.

 

 

 

IV.             CONCLUSOES


Da leitura feita, ressalta que a primeira ENDE não está ultrapassada, está apenas melhorada.  As ENDE são também documentos de informação importantíssimos.

Devemos voltar a insistir na necessidade do saneamento da ideologia do dividendo demográfico tal como reflectido na ENDE 2025-2044 (p123): ela é uma ideologia claramente adaptada e inspirada por estratégias externas, porque o declínio da fecundidade não pode ser visto com um elemento positivo ou benéfico para a economia ou para o povo Moçambicano, como o prova a análise da densidade populacional, hoje ou daqui a vinte anos.  A nosso ver, é a redução do número de crianças por mulher adulta através da educação pública que deve ser a estratégia, não a redução da fecundidade, o que seria uma agressão física, mental, moral e cultural.  A escolha consciente deve impor-se à esterilização como meio de redução do número de crianças por família.  A mulher tem o direito de assumir a sua escolha, não por causa de uma fecundidade/infertilidade induzida, mas por uma escolha social, ética, cultural e económica que respeite os valores da família.  Nesse sentido, a política demográfica não pode nem deve ser reduzida à adopção de medidas de influenciação da fecundidade (assédio físico e emocional irreversível), mas sim da procriação (educação pública do cidadão, escolha social e económica consciente).


Mais uma vez, os indicadores no fim da ENDE parecem estabelecer programas de alívio simulado da pobreza, e não da sua eliminação.  Porquê tanta poupança de esforço? Poupar a pobreza.

  • Se o indicador de água potável por exemplo em 2025 vai ser de 53.6%, como é que queremos estar a 70% de cobertura em 2044?

  • As casas com chapas de zinco, hoje a 44,2% e só a 53.2% em 2044!

  • Ou ainda a cobertura dos registos de nascimento, projetada de 41.8% para apenas 69.9% daqui a vinte anos!


No fim de contas, ambos os planos não dão resposta suficientemente satisfatória à maneira como o crescimento demográfico será agenciado, fora da impressão que dão de que a demografia é um problema e uma questão que deve ser limitada a todo o custo, porque vai dar cabo da natureza e dos recursos naturais.  Para um país com uma densidade populacional de menos de 44 pessoas/Km2 e que de acordo com o plano, no ano 2044 seria de pouco mais de 60/Km2 (ou 74/Km2 de acordo com outras estimativas) e portanto ainda aquém da situação hoje da Tanzânia ou do Quénia, a questão devia ser tratada de forma mais positiva e distintamente diferente. O homem ou a natureza e a conservação dos parques? Para quem, senão para os Moçambicanos?


A conclusão inescapável é que a ENDE é uma estratégia fortemente influenciada por interesses estrangeiros: o grande capital e o grande empreendedor, uma banca totalmente alheia à ENDE.  A ausência total da produção baseada no agregado familiar e na pequena indústria da família, na indústria de pequena escala.


Mais uma vez, o plano do governo  e o plano do estado são indistinguíveis. Parágrafos 68, 159 falam da política do governo. Na página 90, fala-se de fortalecer as instituições do governo.  Achamos que esta tendência aliena o estado do povo porque retira ao estado a sua força de agência cujo mandato lhe foi dado pelo soberano através de um contrato que está sendo apropriado politicamente por uma maquinaria administrativa cuja existência assenta no estado, maquinaria esta que se coloca acima do povo.


Por fim, foi omitida desta estratégia a afirmação contundente da soberania alimentar, em tanto que objectivo pilar, não só económico, mas até de Moçambique como país independente.

 

Canhandula

Tete 19 de Setembro de 2024


[3] Que tenha sido analisado ou não, não vem ao caso aqui.  O importante é que o protocolo foi cumprido, cabendo aos Deputados exigir tempo material para uma apreciação afim de aprovarem com conhecimento de causa.

[4] Se esta presunção não for correcta, pedimos clemência, valendo-nos do argumento do cidadão não implicado, mas observador periférico.  Contudo, a imagem de uma banca  constrangida e de mãos atadas persiste, qualquer que seja o banco de referência.

[5] Fale-se de Nametil, Buzi, Chinde, Malema, Machipanda, Macomia, Micolene, Pebane, Songo, Ulongwe, Xilembene, etc.

[6] Terão sido elaborados, na certa, outros documentos de trabalho interpretativos das grandes linhas da ENDE, afim de viabilizar a sua execução.  

[10] crescimento inferior a 2% é negativo na medida em que não oferece margem para um crescimento de substituição (compensação pela mortalidade).

[11] E nos faz esquecer ou ignorar que toda a humanidade de hoje é fruto de uma migração milenar.  Quanto Australiano é originário da Austrália, quanto Americano e originário da América, etc.  A natureza humana é migratória.




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