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MOCAMBIQUE: RELACAO ENTRE O POVO E O ESTADO - ARTIGO 2 (de 6)

Writer's picture: canhandulacanhandula

DÍVIDAS OCULTAS


1. CONSIDERACOES PRELIMINARES

Entre outras coisas, dizíamos nós na nota introdutiva que observamos a utilização do estado como recurso em si próprio e que o reforço do projeto nacional está adiado, dando prioridade a uma lógica económica de apoderamento de recursos e da privatização do património do estado, com refúgio no Dubai e outras capitais financeiras que favorecem o empobrecimento do país. Isto corrói e debilita as instituições soberanas, incluindo as que são responsáveis pela segurança e inteligência nacionais, como ficou provado pelo julgamento das dívidas ocultas. Notamos também que do ponto de vista dos serviços financeiros, assistimos a uma banca que deixou de responder ao povo e passou a servir uma elite citadina que, bom grado, mau grado, se adaptou a instituições nacionais agora mais viradas para os interesses do capital estrangeiro.


Precisamos de nos libertar da dependência excessiva do capital externo e de contar mais e investir os nossos recursos, a nossa imaginação nas instituições do nosso Continente e do nosso país.


2. A SAGA DAS DÍVIDAS OCULTAS

A expressão dividas ocultas[1], é na realidade um eufemismo para evitar de falar de dividas ocultadas. A diferença semântica entre ocultas e ocultadas é importante na medida em que ocultadas esclarece como chegaram a ser ocultas: por ação ciente e deliberada de quem pode arranjar subterfúgios para ocultar e que tinha o dever de agir de forma estadista. Este eufemismo atingiu o seu apogeu no processo judicial da BO em Maputo com dois fenómenos:

  • Uma dúzia de réus, que na totalidade não se apoderariam coletivamente de mais do que 200 a 300 milhões de dólares, enquanto a tal dívida é de 2 biliões. A história não esta completa.

  • Penas impostas de 12 anos ao máximo! Até um violador de menor apanharia uma pena superior. Quantos milhões de Moçambicanos ficaram condenados à pobreza por causa desta dívida que mesmo assim o povo terá de pagar sem mais? E para a pagar, a contabilidade nacional terá de imaginar ginásticas que tem e terão impacto na qualidade de vida do povo.

Tanto o julgamento como as penas calculadas pelos nossos eruditos juristas não fazem justiça nem ao estado nem ao povo. A quem então beneficiam?


A este propósito, permita-me o leitor que conte um pequeno episódio pessoal resultante desta dívida[2], na plena consciência de que sou apenas um de trinta e tantos milhões de Moçambicanos, e em situação privilegiada em relação ao povo a que pertenço. Eu trabalhei para uma organização internacional desde 1991 até 2021. Portanto, para começar, a saga (para não dizer o que foi na realidade, um crime) da dívida ocultada passou-se na minha ausência. Contudo, havia decidido enviar para a minha conta em Moçambique um valor de $50/mês desde 1994. Na altura da descoberta da dívida, quando a moeda nacional caiu de valor em 2014 tinha eu somado na conta $12,000 convertidos em meticais. Com a súbita desvalorização, quando vim de férias em Janeiro de 2015, o mesmo montante em meticais valia $3,650, uma perda de $8,350, ou seja, uma poupança de vinte anos transformou-se subitamente em poupança de seis anos! E se tivesse enviado todo o meu salário, onde estaria hoje a minha segurança de velhice? Como disse, eu sou um dos cerca de menos de 00,1% de Moçambicanos privilegiados. E os outros Moçambicanos?


Estas dívidas ocultas somam-se a outras dívidas contraídas e mais bem explicadas, como a dívida pública destinada a empoderar a ENH[3] para permitir ao estado participar com as empresas estrangeiras nas explorações do gás. Este esforço por parte do estado foi estratégico e plausível porque nos permite ocupar um espaço mínimo face às empresas estrangeiras focalizadas na exportação dos nossos hidrocarbonetos. Contudo, e independentemente do consentimento que devemos dar a esta estratégia, o crescimento da dívida deu lugar ao aumento do custo de vida e a um aumento dos juros de empréstimos públicos de 5% a 9% em 2019 (e hoje?), e quanto mais a produção do gás demora, maior será o peso para a economia moçambicana[4]. Foi uma aposta e uma política económica encorajada pelo padrinho FMI, que acabou também retirando o seu apoio financeiro (se endividamento se pode chamar apoio) aquando da descoberta da dívida ocultada.


O papel dos bancos internacionais que facilitaram estas dívidas ocultadas na Suíça, na Rússia, nos Emiratos Árabes Unidos e na França mostra claramente uma conspiração designada a empobrecer o país e um desprezo total por todas as regras de diligência. Pesca de atum? O que se descobriu a posteriori sobre a capacidade de pesca nas nossas águas foi que se precisava de outros insumos que só poderiam ser adquiridos do outro lado do Continente, nas águas da Namíbia! Não se fez um estudo sério de viabilidade. O que se descobriu acerca da intenção de patrulha costeira, etc. Ninguém se importou em desembolsar, fosse qual fosse o destino a dar a esse dinheirão. As bananas comeram eles e o povo Moçambicano ficou e continua a varrer as cascas.


Muitíssimo foi escrito, está sendo escrito e continuará a dar muita manga para escrever. A história completa ainda fica por ser revelada porque a saga continua, mas o fato é que de acordo com estimativas de autoria provada, ao chegar-se a 2019, as dívidas ocultadas tinham custado já à economia de Moçambique cerca de $12 biliões (80% do Produto Interno Bruto de Moçambique) e forçou mais 2 milhões de Moçambicanos para a galeria da pobreza.



3. CONSIDERAÇÕES

As relações entre o povo e o estado, tal como estão constituídas presentemente, são ilustradas parcialmente por esta dívida cheia de subterfúgios destinados a reduzir a culpa. Considerando os efeitos desta dívida no bem-estar do povo Moçambicano, como o demonstraram as greves dos professores e dos médicos em 2022 e 2023, e os atrasos no desembolso de salários dos funcionários públicos, e outras tantas situações de pobreza manifesta, fome, doença, falta de infraestruturas escolares etc., o estado devia ter-se empenhado e investido para que esta fosse considerada DÍVIDA ODIOSA. Atacada por este ângulo, ela teria o mérito de que, uma vez assim reconhecida, estava preparado o terreno para que uma batalha legal pudesse ter lugar afim de isentar o estado/o povo de a pagar. Ademais, o drama do Ministro que passou mais de quatro anos na prisão da África do Sul evitando extradição para os EUA, e as batalhas legais na África do Sul e na Inglaterra também custaram dinheiro público.


A gestão deste dossier complexo tem impacto profundo na relação entre o povo e o estado, não só pela maneira dos procedimentos, mas também pelo custeamento enorme do desfecho demorado do drama nos EUA e na Inglaterra. No assunto mais lato da dívida pública, o nosso argumento central é que a nossa economia parece estar assente numa filosofia de endividamento eterno. Porquê devemos ser como todos e não podemos ter a coragem de ser diferentes? Não terão existido países que não tinham dívida nenhuma a uma certa altura da sua evolução? A via obrigatória da pobreza em que nos encontramos é um estado do interesse do capital internacional. Por isso, em vez de nos demorarmos na dívida ocultada, devíamos ir mais longe: Revisitar as táticas e estratégias do capital internacional de nos manter endividados, e analisarmos como é que temos estado a navegar. Porque o estado de endividamento é um estado de dependência e cativeiro, é do interesse do capital estrangeiro.


A dívida, a corrupção/suborno e o roubo e a não exigência de contas por parte de certos credores são elementos de uma estratégia deliberada das instituições cuja missão é de enfraquecer e manter debilitados os países Africanos cheios de recursos: as dívidas sem contornos especificados, os fundos fáceis como os da COVID, do Millennium Challenge Account, aos quais os “doadores” fecham os olhos à prestação de contas servem todos para perenizar uma relação de dependência doente, que lhes permite impor outras condições.


Os mecanismos de entretenimento da divida

1. Ações das Instituições Internacionais

Instituições criadas com objetivos nobres transformaram-se em meios de opressão: o estado de endividamento de países detentores de recursos naturais cai bem no esquema de interesses de países ricos, e constituíram primeiro, agências para promover o endividamento, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional que nos foram impondo todo um conjunto de medidas de desindustrialização (Mabor, Textafrica, Texlom, Soveste, Cometal-Mometal, Texmoque, …)[5].


2. Entreter e Perenizar o endividamento

Em segundo lugar, depois de nos encurralar e ajudar-nos a destruir as nossas indústrias de manufatura, passaram a endividar-nos. E para nos manter no endividamento, inventaram mecanismos destinados a entreter a divida, tais como:

  • Ajustamento estrutural, que não carece de elaboração;

  • O “debt treatment under the Common Framework” (se um país quiser pedir um tratamento da dívida- deve ter um programa do FMI tal como o Extended Credit Facility![6] Por outras palavras, não se discute a dívida a não ser que contraia outra dívida sob a forma de programa conexo!

  • O Rapid Credit Facility,

  • O PRGT - Poverty Reduction and Growth Trust,

  • O Catastrophe Containment Relief Trust, destinado a atenuar o impacto da dívida dos países mais pobres e mais expostos às catástrofes naturais,

  • A Multilateral Debt Relief Initiative.

Todos estes mecanismos financeiros são destinados, não ao desenvolvimento e a livrar os países da pobreza, mas a fazer com que o peso da dívida seja de certa forma suportável. Trata-se de fazer com que a pobreza seja minimamente suportável, não de a eliminar. Fazer com que quem carrega a dívida não morra, senão não temos mais animais de carga (desculpem a expressão crua!). A multiplicidade de mecanismos demonstra esta resistência de nos ver quebrar as algemas. Reduce, do not eliminate poverty.


E como os nossos peritos em economia estudaram nas universidades ocidentais na sua maioria, não tem a imaginação de inventar um modelo diferente. O roubo e o suborno internacional é hoje reconhecível pelo jovem. Tão explorados fomos e continuamos a ser que reconhecemos doações financeiras feitas em momentos especiais da nação, que se parecem muito com dinheiros destinados a produzir efeitos não declarados. Aceitamos e reconhecemos que fazemos parte de uma estrutura económica internacional que precisa de Moçambique por três razoes: energia, terra e recursos minerais. Para que estes três elementos estejam à disposição, nós, Moçambicanos, devemos continuar debilitados, porque desta fraqueza depende a continuação da prosperidade dos países ocidentais. Para que a pobreza continue, ela deve ser:

  1. Suportável através da instalação de válvulas de escape,

  2. Mantida por um sistema interno flexível, que deve ser alimentado com dinheiro fácil sem contas a prestar, para continuar a servir de portagem para o escoamento das riquezas; e

  3. Suprida de pequenos programas destinados a dar impressão de progresso. Continuamos a inaugurar sistemas de água, 45 anos depois da independência. Num país com quantos rios?


3. Mecanismos de reforço da mentalidade de pobreza

Para cúmulo deste sistema internacional sugador de sangue, foram sendo criadas instituições ocidentais que se arrogaram o direito de ditar critérios ditos internacionais e de classificar os nossos países de acordo com o nível de endividamento, e o que chama de “risco” de não pagamento. Credit Ratings Agencies, chamam-se e impuseram-se no sistema capitalista para reforçar a mentalidade de que certos países estão tao endividados que representam um risco ao capital estrangeiro, e, portanto, para esses países deve-se aplicar uma taxa de juros proporcionais aos riscos. Passamos assim a pagar taxas de juro até sete vezes mais do que os países ricos. Standard & Poor’s, Moody’s, Fitch e outras. A filosofia subjacente que nos querem transmitir e inculcar: se és pobre, a culpa é tua.


4. A dívida como um campo de jogos para ONGs ocidentais

Agora veio o meio ambiente como uma forma fácil de fazer dinheiro enquanto se vendem balões de ar quente, a pretexto do meio ambiente. Este novo discurso trouxe consigo uma série de padrinhos. Temos agora:

  • Debt for Nature Swap

  • Carbon Trading


(a) Debt for nature swap:

Trata-se de um sistema que encoraja a negociação da redução da dívida contra o compromisso de investir na conservação da natureza e nos parques naturais no território nacional (incluindo se for possível, águas territoriais). Só que os peritos da conservação no território nacional são normalmente ONGs do Ocidente agindo em território nacional como se estivessem num espaço extraterritorial, conquistado! Com o dinheiro da nossa dívida!


Por exemplo, o Equador negociou a redução de uma dívida de 1,6 biliões de dólares para $644 milhões. Em contrapartida, o país comprometeu-se a gastar $18 milhões por ano nos próximos vinte anos para a conservação da fauna marítima dos Galápagos. Só que os peritos desta conservação não são Equatorianos. A quem beneficiam os $360 milhões? Conservação significa barrar o caminho aos pescadores nacionais.


Ah! E a dívida restante de $644 milhões que de novo passou a $656 milhões e é garantida pelo International Development Finance Corporation dos EUA, agora transformada em “Galapagos Bond”[7]. Estamos a ver a manobra contabilística? A pergunta que ficou por se fazer: finalmente a quem pertence, e o que acontece no arquipélago dos Galápagos durante estes vinte anos?


(b) E o Carbon Credit,

Deste pode-se dizer muito, mas passemos a resumir da seguinte forma: os países desenvolvidos do Norte comprometem-se a pagar aos países Africanos o carbono absorvido pela floresta local, criando assim mercados de carbono. Do que se trata? De deixá-los poluir o ambiente, porque a Africa não polui tanto e portanto, o défice de poluição de Africa vai servir para justificar que eles continuem a poluir, enquanto nos obrigam a adoptar energia chamada verde, de novo cuja tecnologia eles tem para nos vender (do seu monopólio)!!!


Infelizmente, nós aceitamos este jogo falso. Falso, primeiro porque o que os países industrializados estão a pagar teoreticamente não tem nenhum impacto ambiental praticamente: com ou sem este dinheiro, a natureza africana tem o mesmo impacto ambiental positivo; em segundo lugar, pagar para continuar a poluir não tem impacto nenhum, apenas absolve a consciência de quem continua a poluir. É uma contabilidade falsa. Em terceiro lugar, o dinheiro não vai ao povo e nenhum dos financiadores está interessado em estabelecer mecanismos transparentes de responsabilização, desde que o dinheiro seja desembolsado e que se possa afirmar em público que houve transações de crédito de carbono e que a continuação da poluição está devidamente compensada.


Está montada toda uma maquinaria de informação que faz cálculos não se sabe bem baseados em quê, para apresentar ao público o custo do crédito de carbono em Moçambique, no Gabão, no Kenya, etc. Fraude internacional desavergonhada que não terá impacto no próximo ciclone que nos vai visitar. Não basta que os nossos países sejam lixeira de aparelhos eletrónicos e eletrodomésticos abandonados e avariados, viaturas de segunda mão e tutti quanti se possa deitar em Africa. Agora procuram a absolvição antecipada para continuarem a poluir. E nós por força de pressao coletiva, aceitamos esta fraude!


Este ano, os Emiratos Árabes Unidos compraram cerca de 24 milhões de hectares de terras na Zâmbia, Tanzânia, Zimbabwe e Libéria ostensivamente para a sequestração do carbono[8]. O que não estamos a ver é que não se trata de redução de emissões (enquanto continuarem a extrair o petróleo, os Emiratos não têm interesse nenhum em reduzir a poluição e as emissões) mas de dois objetivos simultâneos: comprar terras para desígnios futuros de produção alimentar para exportar parra os Emiratos sem pagar impostos, e encobrir a fuga à redução da poluição (tendo comprado crédito de carbono). Contratos de 30 anos!


Em conclusão, lidar com as instituições do capital internacional, requer muita analise, perspicácia, e negociação aguerrida e nacionalista porque estamos num jogo de forças existenciais.


É tempo de deixarmos de exigir, procurar e esperar dinheiro fácil contra um volume de carbono que nós nem sabemos calcular. Aliás, nem eles sabem calcular, mas basta um Zé esperto anunciar um número fictício com um Inglês impressionante, e caímos todos na fita, adotamos sem verificar!


Precisamos de nos libertar, e Moçambique tem os recursos para mudar este relacionamento e esta conversa mentirosa. Toda ela justificada por uma frase tão tonitruante como falsa: globalização: globalizar a saúde e a educação talvez. Mas globalizar o gás de Moçambique? Globalizar o Parque da Gorongoza? Globalizar as Quirimbas?


Ofereço mais uma vez como conclusão: Ninguém muda nada se não sentir que perde não mudando e que ganha mudando.

Jose, Tete

Outubro de 2023




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