O CARVÃO DE TETE
1. INTRODUÇÃO
Dizia já na nota introdutiva que o repto que lanço reside em várias situações com pouco valor para o povo e a nação Moçambicana, uma das quais é a persistência de uma produção econômica que continua a priorizar a exportação. Dei o exemplo do investimento na linha férrea, que continua a servir para a exportação, como foi concebida a economia nacional pelo colonialismo português. Não existe linha férrea que ligue Tete-Moatize a Maputo ou Lichinga, e que facilite a circulação interna de pessoas e bens.
Assim, observamos na Província de Tete, contexto do presente artigo, o pequeno produtor que não consegue melhorar a qualidade da sua colheita, e por mais abundante que ela seja, não tem capacidade nem de armazenamento coletivo ou escoamento para zonas mais carentes, uma vez que não existem estruturas de apoio e a banca colocou juros de empréstimos fora do alcance do produtor. Ele (muitas vezes, ela) acaba por colocar o seu produto ao longo das estradas. O tomate, a batata e o repolho acabam por apodrecer. Uma economia local sem apoio do capital, mais interessado em jogar em terreno mais fértil da especulação financeira, não contribui (nem a economia nem o capital especulativo) para a construção de uma nação próspera e de um manifesto nacional, o qual devia ser iniciado a partir do distrito empoderado.
O grande capital não tem compromisso com a nação nem com o Distrito; com um acordo firmado em Maputo, este capital tem o hábito de nos visitar como se fosse mandatado pelo poder central e chega de forma agressiva, contribuindo para um ambiente de mal-estar entre o povo e o seu estado, um mal-estar que deve ser resolvido a tempo para evitar conflitos. Essa é uma forma de contribuir para a construção de uma nação coesa.
2. OS DESAFIOS DO CARVÃO DE MOATIZE/A VALE
CARBOMOC, Vale do Rio Doce (Vale, no vulgo popular) e Jindal são nomes conhecidos em toda a Província de Tete. A Vale iniciou as suas atividades exploratórias em 2007, liquidando pela sua presença a CARBOMOC já exangue. Os megaprojetos de exploração de carvão no Distrito de Moatize significaram a expulsão de mais de 10.000 pessoas das suas moradias e a violação dos cemitérios, que na cultura Africana fazem parte do que nós somos. Passados quinze anos de exploração mineira, a Vale retirou-se; Moatize e Tete não registaram nenhum desenvolvimento durante esses anos de presença desta empresa brasileira, para além de uma indústria hoteleira agora em degradação. Ela deixou a população mais pobre do que estava quando iniciou as suas atividades. Até persiste a opinião de que o pior esta por vir com a entrada da Vulcan/Jindal.
As oportunidades de emprego prometidas às populações afetadas e vizinhas foram distribuídas a pessoas vindas de outras Províncias do pais, da mesma maneira como aconteceu com o gaz de Cabo Delgado, por razoes obvias mas totalmente evitáveis: as populações destes Distritos e Províncias em questão tem um nível muito baixo de formação básica. Um documento de Janeiro de 2021 do Centro de Integridade Publica[1] sobre a indústria Extrativa intitulado “depois de usufruir de generosos benefícios ficais a Vale decide desinvestir em Moçambique” tira as seguintes conclusões:
O anúncio de pretensões da Vale em proceder ao desinvestimento em Moçambique levanta questões que devem ser cuidadosamente analisadas para evitar quer as empresas multinacionais se instalem em Moçambique, maximizem os seus ganhos em prejuízo dos nacionais e ainda se beneficiem de isenções fiscais e encerrem atividades sem contribuir para a economia com o potencial existente. É no mínimo curioso que o encerramento das atividades da Vale em Moçambique aconteça numa fase em que os benefícios concedidos pelo governo de Moçambique estejam a expirar.
Durante os anos de produção (2011 a 2019) da Vale em Moçambique, o país perdeu cerca de 4,5 mil milhões de MT referentes aos benefícios fiscais sobre o imposto de produção. Acresce-se a este valor os valores referentes aos benefícios fiscais sobre o IRPC (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas)[2] e outras categorias que não foi possível apurar devido a falta de dados nos documentos publicamente disponíveis. (a compra por parte da Vale das participações de mina e logística de titularidade da Mitsui ao valor de um dólar dos títulos, sem declarar de quantos ativos se tratava). – P.7
Para além disso, a poluição ambiental, que era mínima até à introdução da mineração a céu aberto, não só atingiu os rios, mas passou a produzir diariamente uma nuvem de poeira sobre Moatize e Tete, às quais as pessoas acabaram por se habituar inconscientemente. As casas escurecidas, as crises de tosse e de tuberculose em Moatize talvez tenham chamado a atenção do governo. Mas a agência nacional para o controlo de qualidade ambiental parece não ter laboratórios nem equipamento para medir os níveis de poluição do ar e dos rios.
Em conclusão, a passagem da Vale, e, diga-se ademais, da Jindal criou na população de Tete um sentimento de revolta pelo que aconteceu em Moatize, e que foi reprimido com força policial de um estado que se diz ao serviço do povo, e um verdadeiro calvário de um reassentamento mal feito, que deserdou a população da sua economia familiar. Não houve, não há benefícios da extração do carvão para a Província[3]. Pelo contrário, os grandes caminhões de carga estão destruindo as estradas, desde Moatize, passando por Tete até Chirodzi, no Distrito de Marara.
Como se articula nesta situação a relação entre o povo e o estado? Um dos instrumentos seria talvez o rigor no trabalho de responsabilidade social da corporação na comunidade (CSR), o qual só pode ser imposto pelo estado. Este trabalho deve deixar de ser um simples teatro de propaganda voluntarista, e deve passar a tratar:
da poluição do ar e dos rios (carvão ou outra matéria-prima poluente);
da deterioração das condições de vida no distrito afetado, incluindo casas a rachar por causa de explosões de mineração;
da proteção da saúde das populações vivendo sob poluição industrial[4];
da deterioração das estradas públicas por caminhões de transporte de carvão de Chirodzi (Marara) a Moatize.
E isso só é possível com o empoderamento das estruturas locais do estado – os governos Provinciais e Distritais – com uma verdadeira descentralização.
3. DISCUSSÃO
O Decreto Ministerial 189/2006 de 14 de Dezembro de 2006 estabelece, como premissa, normas básicas de gestão ambiental para a atividade mineira. As normas enunciadas no seu primeiro artigo, parágrafo segundo:” visam ainda garantir (as presentes normas) que as atividades referidas no número anterior sejam conduzidas com uso de métodos simples que evitem a poluição do ar, do solo e das águas, que não afetem significativamente a flora e a fauna, nem atentem contra a saúde humana”.
Poluição do ar e saúde humana estão intimamente ligados e todo o habitante das cidades de Moatize e Tete pode atestar da poluição que se respira e da pólvora que se cheira dia após dia.
Num decreto anterior (26/2004 de 20 de Agosto de 2004), o regulamento ambiental para atividade mineira prevê nos seus artigos 16 e 17 questões relativas às emissões poluidoras do ar, ao ruído e às vibrações. Não parece, entretanto, haver mecanismos de monitoria e responsabilização pelos efeitos destes na saúde e bem-estar das populações afetadas em Tete e Moatize. Apesar de prever no artigo 20 do mesmo decreto que “os titulares mineiros ou operadores serão responsáveis pelos danos que venham a causar ao ambiente em resultado das operações mineiras”. Não estamos a ver nenhuma ação que indique esta responsabilização, reconhecimento ou reposição. Estamos em esperar que os danos humanos estão cobertos nos artigos 16 e 17 acima mencionados, mas não parece existir nenhuma ação para a proteção da saúde das populações que respiram este carvão diariamente.
Com o risco de errar, ao ler as várias disposições legais sobre a exploração mineira, dá-nos a impressão de que a lei vem para satisfazer as instâncias responsáveis pela emissão da legislação, mas que no final, ao nível do Distrito onde esta atividade exploradora tem lugar, ninguém está responsabilizado pela execução da lei e pela obrigatoriedade das diferentes disposições legais. Fazer obedecer e mostrar à população que a lei está sendo aplicada e exigida seria uma forma de desenvolver a confiança entre o povo e o estado (expressão e localização do poder).
Assim sendo, é nosso parecer que ainda estamos longe deste nível de relação e compromisso entre o estado e o povo. A este propósito, citamos aqui passagens do artigo Recursos Naturais em Moçambique[5]: possíveis cenários e desafios do Prof. Doutor Viriato Dias, do Instituto Superior de Estudos de Defesa “Tenente-General Armando Emílio Guebuza”
“Na maioria dos países africanos bafejados pelos recursos naturais, a sua exploração não conseguiu dissolver as desigualdades sociais insolentes, entre os conflitos étnicos-tribais, devido à instabilidade político-militar e socioeconómica, ao ponto de alguns evocarem mesmo a existência de uma maldição. Importa objetivamente esmiuçar, com base nos exemplos dos países selecionados, as perspetivas de desenvolvimento democrático que se desenham para o novo “El Dorado” (Moçambique) com a existência e descobertas de vastos recursos naturais.
Em Moçambique foram descobertos jazigos de gás e carvão que contam entre os maiores do mundo. De acordo com o Instituto Nacional de Petróleo, Moçambique possui mais de 2,8 biliões de metros cúbicos de reservas de gás, comparáveis às reservas do Iraque. A maneira de lidar com esses recursos naturais caracterizará o futuro desenvolvimento do país. De acordo com estimativas, o rendimento proveniente desses recursos naturais porá um fim na dependência de dinheiros internacionais da cooperação para o desenvolvimento (cerca de 40 por cento do orçamento do Estado) nos próximos cinco até dez anos. Moçambique precisa de combater o paradoxo da riqueza mediante criação de instituições para o controlo e distribuição de recursos provenientes de matérias-primas. Para isso são fundamentais as condições básicas do Estado de Direito, a fim de estabelecer padrões obrigatórios e a serem respeitados no fomento de recursos, que até o presente momento são inexistentes ou insuficientes.
A orientação económica neste caso estudado não está na superação das necessidades do povo, mas sim na demanda e no agrado a uma indústria externa extrativista que traz consigo enormes financiamentos. E as pessoas no poder esqueceram-se (ou ignoram deliberadamente) que o estado, representante do soberano, não tem poderes absolutos. O poder absoluto traz consigo várias arbitrariedades tais como o endividamento do país sem aprovação da Assembleia da República, ou as parcerias com financiadores estrangeiros com os poderes nacionais que exibem a força. Como disse recentemente Teodato Hunguana, o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Daí o papel que devia ser independente dos outros braços de soberania que o povo criou (pelo menos teoreticamente): o legislativo e o Judicial, desde que o judicial seja órgão que funcione com equidade e independência. Isso só e possível se ele for constituído de forma diferente, que a AR poderá estudar.
A famosa Responsabilidade Social Corporativa (em sigla inglesa CSR) deve ser reforçada e exercida de forma mais substancial, deve ser inspecionada pelas instituições Distritais ou provinciais, segundo o caso, pelo que uma descentralização das relações com as empresas é também necessária. Senão, todas passam a referir-se a Maputo e, sabendo que são raramente inspecionadas, as suas ações não passam de relações publicitárias. Que as ações CSR tenham impacto significativo na formação de quadros Moçambicanos ou na reparação de infraestruturas danificadas pelas suas atividades de exploração e exportação. Propomos assim que a CSR exigível destas explorações seja mais séria e que inclua: exigir da Jindal a reposição em bom estado das estradas de Moatize até Chirodzi, em Marara. Pôr terra batida onde existia alcatrão é uma aldrabice.
A lei do CRS pode exigir uma percentagem da produção das matérias-primas que deve ficar e ser gerida localmente pela Província ou Distrito afetado. Para isso, o empoderamento da província ou do Distrito seria indispensável, e isso faz parte de uma discussão mais ampla sobre a descentralização da administração do poder de estado.
Contudo, como nota um estudo do Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Outubro de 2022 (p.32)[6],
a comunidade de agricultores de Nhansanga queixa-se de água contaminada pelo carvão que invade os campos ao longo das margens do rio Nhansanga e que desagua diretamente no Rio Zambeze. As comunidades locais, ativistas, ONG salientam que a Jindal evita o máximo possível o diálogo com a população e organizações da sociedade civil e quer negociar tudo diretamente com o governo central.
Mais adiante, o relatório nota que “… a Jindal tende a ganhar casos mesmo nos tribunais”.[7]
Os conflitos em Africa não acontecem por acaso. São um índice de interesses económicos sobre os nossos recursos naturais, onde o capital estrangeiro dita as regras do jogo. Daí as concessões nas licenças, nos contratos, nos impostos e uma fiscalização quase não existente. A não transparência nos contratos favorece a exclusão social e o mutismo sobre a equidade entre todos os Distritos da nação, incluindo os menos providos de riquezas naturais.
De acordo com uma conclusão do Fórum da Sociedade Civil sobre a Indústria extrativa, que teve lugar em Maputo de 27 a 28 de novembro de 2008:
O envolvimento dos representantes do estado e altos funcionários nos interesses da indústria extrativa, não favorece um estado isento e imparcial que possa tratar dos interesses da economia nacional, enquanto recebem dividendos da indústria. De maneira ilustrativa: como e que um secretario de Estado para a energia por exemplo deixaria passar os dividendos de Pande, se ele fosse acionário de uma das empresas associadas ao Pande. Se Pande devesse retroceder uma percentagem das suas receitas ao orçamento do estado e ao mesmo tempo outra percentagem aos seus acionários, o secretario de Estado, naturalmente como acionista, priorizaria o seu dividendo. E quem deve levar a parte do estado aos cofres do estado? E o mesmo Secretario de estado! Em resumo seria muito difícil ter políticas que garantam soluções aos problemas sociais e públicos do país enquanto o dirigente se preocupa mais com negócios privados, por sinal não proibidos pela lei.
Não é segredo nenhum que uma boa parte da classe política nacional, membros e funcionários seniores do governo, e da Assembleia da República tem interesses pessoais nos grandes projetos como acionistas. Uma vez que os lucros destes grandes empreendimentos estão em relação direta com os lucros que eles esperam tirar, então não lhes interessa taxar impostos rigorosos a estas empresas. Uma vez que tem influência no governo e o espaço político lhes facilita o lucro, ele tem muito pouco interesse em renegociar os contratos de forma a reencaminhar os grandes recursos financeiros das multinacionais para o estado.
Concluímos referindo-nos ao estudo do Instituto de Estudos Sociais e Económicos que preconiza
A forma de gestão de perto dos recursos naturais ajuda a prevenir os conflitos e a gerir a sua exploração de forma mais inclusiva e pacífica. Para isso, e como o preconiza um estudo já realizado seria necessária e vital uma grande descentralização das atividades económicas de licenciamento, porque as consequências das atividades se fazem sentir a nível local.[8]
Permita-nos repetir, para conclui: Ninguém muda nada se não sentir que perde não mudando e que ganha mudando.
Jose, Tete
Outubro de 2023
[1] https://cipmoz.org/wp-content/uploads/2021/01/Vale-decide-Desinvestir-em-Moc%CC%A7ambique-2.pdf
[2] https://www.at.gov.mz/por/Processos-Fiscais/Imposto-sobre-o-Rendimento-de-Pessoas-colectivas-IRPC
[3] https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/vale-o-dossie-mocambique
[4] https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/vale-o-dossie-mocambique
[5] https://macua.blogs.com/files/recursos_energ%C3%A9ticos_mo%C3%A7ambique_desafios_cen%C3%A1rios_rmei_2018-1.pdf
[6] https://www.iese.ac.mz/grande-riqueza-poucos-beneficiarios/
[7] https://www.iese.ac.mz/grande-riqueza-poucos-beneficiarios/
[8] https://www.iese.ac.mz/grande-riqueza-poucos-beneficiarios/
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