Passamos a reproduzir aqui por inteiro uma prosa saudosa por autorização do colega e mestre Filimone Meigos. Colega professor dos anos 1974 a 1979 em Chimoio, Manica.
BEIRA & BEIRENSES
Por Ricardo Santos
Em Setembro de 2022 o meu amigo Filimone Meigos foi convidado pela Universidade Licungo Beira para intervir num Simpósio alusivo à comemoração dos 30 anos da publicação do livro TERRA SONÂMBULA de Mia Couto. O simpósio falava de 30 anos celebrando a moçambicanidade. O título deste post é meu. Pela relevância da comunicação então apresentada, passo a transcrever alguns extractos: (…)
De facto, para mim, a Beira é uma terra de expressões. Quer dizer, a Beira é construída pelos expressionismos, individuais e colectivos, o que a faz diferente, movediça e terra de sonhos coloidais. Pensando bem, a Beira não é uma terra sólida como tantas outras. Ela configura uma memória geo-morfológica que não é nem líquida nem sólida: A Beira é matope. Portanto, essa terra de que se dizia ser sonâmbula, a que Mia Couto alude, pode, e muito bem, ser a nossa Beira, mwathu muno. Por isso aqui estou, numa espécie de re-visitação, do “local do crime”, para tentar mapear algumas características que estruturam a esteira desse chão, a Beira que partilho com o Mia. 1-Mwathu muno (este é o nosso lugar) Um dos pilares do ser beirense é a atitude territorialista caracterizada por esse chão matope, a esteira onde se tece a nossa trama existencial.
Digamos que essa existência é um crime altruísta, uma espécie de cidadania, e de sentido de pertença bastante claro, feitos aforismos. (…) Sendo eu beirense que vivenciou o “crime” a partir do qual Mia, por hipótese, constrói o seu imaginário, vou falar dessa trama imagética (sonâmbula), esse teatro do crime, a partir duma perspectiva fenomenológica. Portanto, vou olhar para a Beira onde nasci, cresci, e de que muito me orgulho, a partir das minhas impressões. (…) 2- Natural não treme Muito antes de Bauman inventar a filosofia do mundo líquido, já a Beira tinha nascido em águas lamacentas, daí o seu nome original, Bangwe, que quer dizer pântano, terreno enlameado.
A Beira nasce dum equilíbrio entre terra e água, sólido e líquido, de um compromisso entre os dois estados, o que a torna muito particular. A Beira é algo que vai para além da proposta de sociedade líquida sugerida por Bauman. Ela nasceu duma espécie de pecado Original que começa no facto de ter sido erguida abaixo do nível médio das águas do mar. Então, ela nasce no matope, entre terra e mar, uma espécie de península cuja única parte não cercada pelo mar é a saída pelo Dondo, rumo ao interland. E mesmo assim, temos o alagadiço que o rio Pungué e seus afluentes produzem. Antropologicamente o interior alimenta a costa com as suas pessoas que confluem para continuar os estudos, mudar de vida e ver novos horizontes na baía de Sofala. É essa característica da Beira que lhe dá o símbolo, uma espécie de respirador materializada pelo Chiveve, uma ria que serpenteia do mar à Munhava e vice-versa, consoante as marés. Portanto o Chiveve é um braço de mar cujo corpo passa pela Muchatazina, Macurungo, Miquejo, Espangara, Goto, Café Nicola, até ir espraiar-se no Índico, pelo desaguadouro das Palmeiras. Digamos que o Chiveve é um marcador identitário que avassala a cidade, espalhando o seu inconfundível perfume de matope. Digo, por isso, que a Beira se adiantou a Bauman, porque ela ocorre num estado nem líquido, nem sólido. A marca da Beira é um estado matope, coloidal, gel. É o matope, barro se quisermos, que determina a configuração da ecologia humana beirense que é maleável, mas nem por isso mole. Trata-se do contexto geo-morfológico a fazer de sua justiça. Sem dúvida, nós beirenses somos mesmo originários de barro não seco, matope, como se diz nas escrituras sagradas.
O que nos dá essa sensação de que a relação com o nosso meio nos ensina a virtude, a que habita no meio: nem líquido nem sólido, Matope de que resulta esta nossa existência fluida, mas ao mesmo tempo sólida. Essa é a Beira que conheço, de gente que se expressa sem medo: natural não treme, dizemos e assumimos na nossa atitude para com a vida e para com “o outro”. O matope não treme. 3-Ndzeru mbawiri (literalmente o juízo são dois) Tal como vimos a Beira tem o condão de atrair confluências. A cidade imita o Chiveve: água vai, água vem até nas suas gentes de proveniências diversas. Atentemos para alguns nomes: A-Sena (Tanga-Tanga, Gumamssanze, Nhamaze, Kauio, Psiko, Nhamaze, Marra…); Va-Ndaus (Simango, Nkomo, Dunduru, Masquil, Mandava, Binda, Tivane, Muchanga…); A-twe (Dirwai, Chirima, Mutota); A-Gorongose (Sambani, Waya); a Ngoni (Majawa, Aloni, Zintambira, Rinze, Ferrão…); Chineses (Tam, Fon Wa, Sheu, Ken Guy, Amenga…) árabes (Mussa, Jamú, Abdula, Mohamed…) portugueses (Martins, Malaquias de Lemos, Veloso, Esteves, Couto, Barbosa…); goeses (Do Rosário, Souza, Quirobino, Tadeu, Gonzaga, Dos Anjos); gregos (Pantazis, Frangoulis, Larantzoules…) matswas (Chaquisse, Chicovele, Zunguze, Machavela, Tualufo…); mauricianos (Beete, Madeleine, Cousin…); alemães/ austríacos (Dalman, Schniering…); a-chuabo (sabonete, Lobo, Chapala, Baptista, Nazaré…); hindús (Harilal, Preladi, Kumar, Narotam, Damodar); A-Nhungwe (Guimarães do Rosário, Costa Xavier, Trindade, Cinco Reis, Kutchamano, Lubrino, Sinóia…); A Chuabo (Sabonete, Canivete, Sabão, San), e sei lá que mais. Todo esse amalgamado foi sendo sedimentado por uma memória comum. Por isso a Beira é um melting pot, uma caldeirada de gentes, coesa, de forma e conteúdo muito particulares. Todas rendidas e moldadas a sua condição mãe: Estado matope.
É uma espécie de metrópole ou el dourado para o qual confluíram gentes de lugares mais a norte e mais a sul, lugares, quiçá, que enfrentaram algum tipo de decadência histórica. (…) O Ndzeru Mbawiri encarna o Yin e Yan, o sim e o não, a noite e o dia, o bem e o mal e a súmula filosófica que dessa dicotomia deriva. Quem detém o conhecimento sabe e conhece o equilíbrio entre as duas coisas da vida, a luz e a escuridão. Esse é o beirense, o inter-Mhuntu sobre o qual José Castiano filosofa elevando-o a um plano conceptual. 4- Fungula masso A Beira é uma terra sonâmbula, mas nem por isso dorminhoca. Não é sem razão que os beirenses insistem na formulação, “fungulani masso”, que quer dizer literalmente abram os olhos. Portanto, fiquem despertos, estejam de atalaia, fiquem atentos. Esse aviso é quase ecuménico, posto que é extensivo a toda a comunidade. Equitativamente. Tal expressão habita o falar e a prática dos beirenses. É o que alimenta, aliás, esse estágio de cidadania activa, expressa no dia-a-dia do beirense: “fungula masso!”, dito em tom de pré-aviso. De Homem para Homem, de mulher para mulher, de mulher para homem ou vice-versa. Na verdade, é um chamamento para a acção: “abre os olhos!”. Quase um imperativo, um apelo à cidadania: “olha, pensa e age!”. Brecht grita:” não deixes que te metam patranhas na cabeça! O beirense:” Iwe, fungula masso!” Não é sem razão que para captar o espírito do “abrir os olhos”, o sociólogo Carlos Serra, crescido na Beira, criou uma rubrica à qual deu esse nome. “Fungula masso” foi o cantinho onde Carlos Serra, usando a metáfora da laranja, tratou de esclarecer que o problema da laranja nem é o de se saber o número de gomos que ela possui. A complexidade da laranja, segundo ele, está na casca que a enforma.
Ora, o descascar da laranja é o sonho de qualquer sociólogo, como o próprio nos assevera: Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão. (…) 5-Beira é wawa Eu disse alhures que a Beira é o sítio dos expressionismos, individuais e colectivos. Podemos divisar tais índices, por exemplo, nas artes, na filosofia de vida e na política. Beira é autêntica e muito sua, por isso em muitos quadrantes ganhou o epíteto de confusa, e a Munhava, seu lugar invicto, praça forte da confusão. Um amigo meu, historiador, beirense de criação e Ndau cultural, Mablinga Shikhcani, diz que o Beirense sabe tudo o que não quer, e não aceita debalde qualquer ideia, sem antes exigir dela a explicação cabal de que não lhe fará mal, nem alterará a ordem natural das coisas, que ele continuará matope. (…) Contra todas as expectativas a Beira foi o primeiro palco de oposição clara á Frelimo. A Beira foi o primeiro sítio onde um então governador devolveu o cartão de membro da Frelimo, para se juntar a um partido da oposição e posterior fundação dum grupo de cidadãos para as eleições autárquicas, com o pomposo nome de “Grupo de Reflexão e Mudança”.
Diferentemente de, por exemplo, Xai Xai, onde a Frelimo ganha com 100%, a Beira reparte o voto entre Frelimo, Renamo e MDM. A Beira deve ser dos poucos sítios onde podemos encontrar, no emblemático café Reviera, ou no Alpino, membros de diferentes formações políticas discutindo os mais diferentes assuntos, sempre tendo por denominador comum o facto de todos serem beirenses. 6 Agora!!?? (…) Compreender a Beira passa por saber ouvir depois de um longo e disciplinado processo de observação (observação participativa) e depois de um respeitoso questionar obtendo as credenciais para o questionamento de tudo em busca do bem maior (greater good). Não deixa de ser verdade que parte do mal-entendido sobre a entidade Beira resulta da pressa e do excesso de autoridade dos diferentes poderes ao longo da nossa história.
Desde o colonial, ao revolucionário e até o religioso. Quando o finado prelado Dom Jaime tentou impor uma maneira de pensar que colocaria um grupo acima do outro a reacção foi forte. Moral da estória: Não há poderes eternos na Beira, terrenos espirituais, seculares ou colonos. Beira não admite e jamais admitirá abusos. Lembram-se da casca da laranja de Carlos Serra pai, que molda à laranja os gomos e toda a morfologia de um suculento fruto? Nestas “brincadeiras” exorcismos e atitudes abre-se o espaço para a compreensão do meta-verso dentro dum universo antes de estes serem uma nação. Há na simbiose destes dois, o político e o cultural, nas dimensões antropo-sociológicas, partes morfológicas de uma nação que discursamos mas não temos a coragem de empreender, descascar as laranjas dos seus gomos e perceber que depois do amargor está o doce e o vitamínico que nos fará crescer, fortes, saudáveis e imunes a doenças que facilmente apanhamos se não descascarmos as laranjas que somos ou desistimos ao primeiro amargor que sentimos, na puerilidade do facilitismo e na ingenuidade das indicações do também pecado original: daquela fruta não comerás.
Aí, sim, como sentencia Mia nos seus ossinhos escritos, a nossa terra continuará sonâmbula nos fantasmas ou espíritos de mau agoiro para o des-futuro comum."
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